“A Little Life” (eu traduziria como “Um pouco de vida”, mas a edição em português saiu como “Uma vida pequena“), de Hanya Yahagihara, já tem 10 anos de publicação (é de 2015) e foi nomeado para vários prêmios.
Nem a autora nem o editor acreditavam que o livro ia virar best-seller, afinal, quem lê um romance de 816 páginas hoje em dia? Para a surpresa de todos, muita, mas muita gente mesmo.
E quer saber? Esse auê todo é mais que merecido. Posso dizer tranquilamente que está na lista dos 10 melhores livros que já li na vida.
Mas vamos à história.
June, Willem, JR e Malcom compartilham um alojamento na faculdade e constroem uma amizade que vai durar toda a vida. Quando o livro começa, eles são todos recém formados, bem no início da carreira, tentando sobreviver em New York.
Willem é ator e trabalha num restaurante para pagar as contas; já conseguiu algumas pontas na Broadway, mas é tudo muito incerto e o cachê bem miserável.
JR foi criado por uma família de matriarcas imigrantes do Haiti; mulheres incríveis e inspiradoras, que tratavam o rapaz como um reizinho. O moço se formou em artes plásticas e era realmente muito talentoso. No início, ele mora num quartinho num apartamento gigantesco de um artista famoso de quem era amigo.
Malcom é filho de um homem rico e, porque ainda ganha uma miséria no escritório onde conseguiu seu primeiro emprego como arquiteto, ainda mora com os pais.
June formou-se em direito e está trabalhando na defensoria pública; ele ama o trabalho, mas não consegue sobreviver com o salário. Na faculdade, destacou-se por suas inúmeras qualidades: cultura geral riquíssima, tocava piano, talentoso cantor, um mestre na cozinha, uma memória impressionante e uma capacidade de raciocínio lógico que o fez cursar um mestrado em matemática teórica (não aplicada, que seria mais prática) só porque curtia os exercícios mentais e abstrações.
No começo da história, June e Willem se mudam para uma quitinete minúscula num prédio muito antigo e mal conservado; é a única coisa que eles podem pagar.
June tem um passado misterioso, que ele não conta para ninguém, nem sob tortura — e os amigos têm a elegância e a sensibilidade de respeitar. O que se sabe é que ele não teve pais e sofreu um acidente aos 15 anos de idade que o deixou com sequelas permanentes na coluna vertebral e nas pernas. Ele sofre de dores terríveis e tem o hábito de se cortar, como alguma forma de punição.
June é tão fechado que se recusa a procurar um psicólogo, pois não consegue verbalizar a sua história. Algo realmente muito ruim aconteceu na sua infância (aos poucos a gente vai descobrindo que a autora só pode ser uma sádica; como alguém pode construir uma história com tantas coisas terríveis acontecendo com uma pessoa?). Para se ter uma ideia (e isso é só o começo), June tem uma frase no início do livro que choca, mas ainda assim não prepara totalmente para tudo que ainda vamos saber. Ele diz para si mesmo que uma das grandes vantagens da vida adulta é não ter que fazer sexo. Pensa.
Mesmo sofrendo horrores, ele é o amigo mais querido de todos. Uma pessoa doce, interessante, interessada. Ele é tão amado que um professor da universidade, de quem ele foi assistente, depois de alguns anos de convivência com ele e seus amigos, pede para adotá-lo, mesmo depois de adulto.
O professor, Harold, e sua esposa, Julia, perderam um filho ainda criança e se afeiçoaram a June. Ele fica encantado e aceita (não sem antes relembrar uma cena particularmente triste da sua infância) e todos ficam felizes — apesar do processo na cabeça dele ser muito mais doloroso do que seus amigos sequer imaginam.
Pense em alguém que encontrou pelo caminho as piores pessoas no mundo nos primeiros 15 anos de sua vida; pois dali em diante, essa pessoa se cerca das almas mais generosas do universo.
Ele tem amigos muito queridos; Willem, especialmente, que perdeu os pais que não eram muito afetuosos ainda jovem, guarda na memória todo o amor que ele tinha pelo irmão deficiente, que não sobreviveu à adolescência. Willem é um homem lindo e desejado por todos, gentil, querido, educado e sensível — e é o amigo mais próximo de June. Mesmo assim, ele leva mais de 35 anos para conhecer o passado que levou o moço a ficar tão fechado, machucado e traumatizado.
As relações entre os personagens é pura, generosa e inspiradora demais. A comunicação é difícil, mas não impede o amor. O cuidado é um desafio, mas não impede o carinho.
June recebe afeto de todos os lados, mas ainda assim não está imune às maldades do mundo. Ele se sente sozinho, envergonhado, não consegue se abrir com ninguém e sente muita falta do seu amigo mais querido, Willem, que agora está começando a engrenar na carreira e passando meses longe para gravar filmes e séries.
No final, todos eles acabam tendo carreiras de sucesso, onde dinheiro não é problema, mas nunca deixam de se encontrar, de passar bons momentos juntos, de compartilhar férias e, não menos importante, um esforço coletivo e muito bonito de se ver para cuidar de June nas suas diversas crises, cada vez mais complexas e sérias.
É uma das histórias de amor mais lindas e comoventes que eu já li; amor puro, genuíno, generoso e desinteressado. Um amor entre pessoas que compartilham um espaço e um período na história do mundo. Pessoas que se unem para salvar um amigo que sofre.
Inclusive tem um trecho do livro (que não anotei, então vou relatar como me lembro), onde June, numa conversa, diz que Willem é o único deles que vai deixar um legado para as pessoas, porque ele faz a vida delas melhor. JB e Malcom também fazem diferença, mas para um seleto grupo de ricos endinheirados — não para uma população tão grande e diversa, como Willem. E que ele, June, só amealhou dinheiro e não fez diferença no mundo.
Eis que Willem, generoso e gentil como sempre, diz que discorda. Que a diferença que ele tenta fazer no mundo é sendo um bom amigo, o melhor que ele puder ser. É para isso que ele existe, não tem trabalho, carreira ou fama que seja mais importante.
E no final é isso mesmo. Não importa o tipo de relacionamento que a gente tenha com pais, parentes, cônjuges, conhecidos, colegas. Se a gente tentar ser gentil, estar perto e ser um bom amigo, a nossa existência na terra já está justificada.
Pelo menos para mim, esse é o resumo da história. Todos ali foram bons amigos de todos; mesmo com as brigas, as crises, a dificuldade de comunicação, a falha ao expressar sentimentos, os problemas cotidianos — o importante é que nenhum deles nunca duvidou que era muito amado e importante na vida dos outros. E muito.
Esse é daqueles livros que a gente vai vivendo e chorando, lendo e pensando, refletindo, sentindo. Uma obra prima que todo mundo deveria ler. Quando acaba, dá saudades dos amigos e dos amigos deles, como se fossem nossos.
Na minha opinião, a aula mais linda sobre amizade que já foi escrita (pelo menos das que caíram na minha mão).
Recomendo demais. Mas já sabe, prepare o lencinho.
Aqui está o link para a versão em português disponível na Amazon do Brasil.
[…] Resenha do livro “A Little Life” (eu traduziria como “Um pouco de vida“, mas a versão em português traduzida por profissionais, saiu como “Uma vida pequena“), de Hanya Yahagihara. O texto escrito está nesse link. […]