AI 2041: dez visões do nosso futuro

Já fazia tempo que eu queria ler “AI 2041: Ten visions for our future”, de Kai-Fu Lee e Chen Qiufan. Eu já tinha lido  “AI Superpowers” dele (a resenha está aqui) e ficado muito impressionada com a visão desse homem. 

Pois que Lee escreveu a obra em 2021 mas teve que revisá-la em 2023, por causa do lançamento do Chat GPT. 

Esse livro é uma grata surpresa (e olha que minhas expectativas já eram altas). Lee fala que quando começou a estudar inteligência artificial (ele defendeu sua tese de doutorado há 40 anos sobre esse tema), quase não se falava no assunto. O chinês, que presta consultoria para gigantes como Apple, Microsoft e Google, é uma das maiores autoridades mundiais sobre o tema.

Nessa obra, ele imagina como serão os próximos 20 anos (lembrando que a versão original é de 2021), com base em seus estudos, experiência e muitas entrevistas que fez ao redor do mundo. 

O título, 2041, é também uma brincadeira (intraduzível para o português); é que Inteligência artificial em inglês é AI; com a tipografia bem escolhida, o A fica muito parecido com o 4, de maneira que 41 é muito similar a AI. Achei bem sacado.

E sabe o mais interessante? Quando peguei a minha edição em inglês, com 442 páginas e letrinhas minúsculas (sério, é até desconfortável; deve ser tamanho 8 ou 9 pt), pensei: eita, vou ter que ler esse tijolo cheio de dados técnicos! Cansei os olhos só de imaginar. Mas fui assim mesmo. E olha só!

Lee convidou seu colega de Google Chen Qiufan, aclamado escritor de ficção científica (ainda não li nada dele; o nome já foi para a lista) para a ajudar na tarefa e eis que a solução não é nada menos que genial: em vez de gráficos, estatísticas e previsões, Lee deu as diretivas e Chen criou histórias que se passam em 2041 para cada uma das áreas do trabalho (as tais 10 visões do título). 

Assim, cada capítulo traz uma história de ficção e uma análise sobre as tecnologias exploradas no cenário. Apesar de ser mais otimista sobre os resultados, a discussão é bem equilibrada e também apresenta os riscos de uma maneira bem realista. 

Aqui um resumo sobre cada uma das visões:

1. O elefante de ouro

Aqui tem a história de uma menina indiana que vive com sua família de classe média. Os pais estão empolgados porque conseguiram fechar um seguro de vida que é um game social; tudo o que cada membro da família faz (alimentação, amizades, comportamento, etc) conta para o cálculo de expectativa de vida e, consequentemente, aumenta ou diminui o valor. O algoritmo controla a vida de todos e até seu irmão menor passa a se alimentar de maneira mais saudável e fazer exercícios para não prejudicar as finanças da família. Acontece que a menina se apaixona por um colega de escola (um bolsista) que é de uma casta inferior — nesse caso, o algoritmo faz de tudo para afastar os dois, pois os dados tem vieses que associam as origens do menino a problemas relacionados à criminalidade. 

Análise

Aqui o autor analisa deep learning, big data, finanças e externalidades. Ele fala sobre os vieses do algoritmo, da privacidade, das oportunidades na área financeira e da influência da AI na vida privada das pessoas.

2. Deuses por trás das máscaras

Essa história se passa na Nigéria e um menino vem do interior para a capital, Lagos, em busca de oportunidades melhores. O cenário é futurista, pero no mucho. As tarifas de transporte, por exemplo, são cobradas com o reconhecimento facial no início e no final da viagem (aí o sistema calcula o valor e debita da conta). Como o rapaz é pobre, ele usa uma máscara para enganar os sensores. O adolescente é muito bom em edição de vídeos e já fez vários trabalhos de sátira usando deep fake (quando se substitui o rosto de uma pessoa pelo de outra, num vídeo), até que é contratado por uma organização misteriosa para gerar um vídeo fake de um artista influencer que já morreu. Ele precisa muito do dinheiro e não tem certeza se está fazendo a coisa certa. Mas no final, acha uma solução criativa para sair do dilema. 

Análise

O tema da história é visão computacional, redes neurais convolutivas, deepfakes, redes generativas adversariais (GANs), biometria, segurança e todas as suas possibilidades e consequências. Aqui também fica muito claro que é possível enganar os checadores de deep fake caso se tenha um poder computacional muito robusto (leia-se: dinheiro), o que traz ainda mais vulnerabilidade a países pobres e desiguais, como a Nigéria.

3. Pardais gêmeos 

Gostei bastante dessa história, que se passa em um orfanato na Coreia (do Sul, naturalmente), onde vivem dois irmãos gêmeos de 6 anos de idade. As personalidades são diametralmente opostas: o Pardal Dourado é extrovertido, extremamente competitivo e ousado. Já o Pardal Prateado é autista, introspectivo e tem dificuldades de socializar. Eles são educados com o auxílio de uma inteligência artificial pessoal, projetada para as necessidades de cada um, que escolhe sua forma e nome. Os professores do abrigo são na verdade, mentores, conselheiros e são os responsáveis por prover as diretrizes mais importantes da educação dos meninos; são eles que orientam as máquinas.

Cada um é adotado por uma família diferente e eles continuam a viver a vida separados com seus assistentes pessoais. Até que um professor resolve colocar os dados em comunicação sem que eles percebam para que eles possam resolver seus conflitos internos e traumas. A história é belíssima.

Análise

O autor mostra o potencial do uso de linguagem natural nas inteligências artificiais generativas, do treinamento auto supervisionado, do GPT-3, da questão da consciência e, principalmente, no importante papel dessas tecnologias na educação customizada para cada perfil de aluno.

4. Amor sem contato

Essa história é muito bacana e se passa em Shangai, na China. Chen Nan perdeu os pais na pandemia do Covid e ficou muito traumatizada. Agora, em 2041, ela mora sozinha e trabalha remotamente — evita ao máximo sair de casa. Nem as inovações (vacinas, marcadores de níveis de risco embutidos na pele, histórico de saúde) que poderiam talvez protegê-la, ela consegue aderir pelo simples fato de que, para isso, precisa sair de casa. 

A tecnologia permite que ela viva bem assim: faz exercícios, come, faz compras, limpa a casa, tudo com o auxílio de robôs e sistemas de imersão.

Che Nan tem um namorado brasileiro, chamado Garcia. Eles se conheceram num jogo virtual e adoram um ao outro. A única coisa que impede de estarem juntos é o pavor que Che Nan tem de se aproximar fisicamente de qualquer pessoa. Assim, toda que Garcia fala em ir visitá-la, ela desconversa.

Até que um dia recebe uma ligação de um médico dizendo que o namorado chegou a Shangai e foi contaminado durante o voo. Ele está morrendo e quer se despedir. Che Nan enlouquece e toma coragem para sair de casa para ir ao encontro dele, no hospital, passando assim por uma série de riscos, inclusive porque está irregular sob vários aspectos (vacina, controle de risco, etc).

O final é surpreendente e é uma pena que essa é a única vez que o Brasil aparece no livro (pelo menos o personagem é bacana).

Análise

Aqui o autor explora todas as possibilidades de cuidados com a saúde, prevenções e ferramentas para enfrentar pandemias, aplicações robóticas, Covid, controle de cidadãos e games.

5. Meu ídolo assombrado

Aiko mora em Tokio e é fã de um cantor chamado Hiroshi X, que morreu há 20 anos. Ela é muito grata a ele, pois quando era adolescente teve uma depressão profunda e conseguiu sair do buraco ouvindo uma música dele. Ela se lembra exatamente do show de despedida, quando ele, mesmo muito jovem, escolheu se aposentar e apareceu misteriosamente morto atrás do palco.

Depois desses anos todos, a moça é convidada para participar de um jogo onde o objetivo é descobrir o assassino do seu ídolo. 

O galã aparece em forma holográfica em situações inusitadas e vai dando pistas para descobrir o que realmente aconteceu. Ela vai investigando, selecionando pistas, entrevistando pessoas, até descobrir toda a verdade e ganhar o grande prêmio.

Análise

Após o conto, Kai-Fu faz uma análise sobre o poder e as aplicações da realidade virtual, da realidade aumentada e da realidade mixada (que combina as duas anteriores). Fala também do potencial e dos riscos da interface cérebro-computador, além de chamar atenção para os problemas éticos e sociais do uso dessas tecnologias.

6. O motorista santo

Chamal ainda vai fazer 13 anos de idade, mas já é um gamer respeitado no Sri Lanka. Sua paixão são os carros! Seu tio Junius, que já foi motorista, o convida para participar de um teste numa empresa chinesa de carros autônomos. Os robôs, ao contrário dos seres humanos, demoram muito para aprender e precisam de zilhões de dados e experiências para tomar decisões. Com o trânsito caótico no Sri Lanka, a ideia é usar gamers talentosos como Chamal para treinar a inteligência artificial.

O menino adora a experiência, totalmente imersiva, de pilotar, inicialmente em um ambiente que simula o seu bairro; depois o restante da cidade, outros países. Quanto mais obstáculos e problemas ele consegue contornar, mais dinheiro ganha (e sua família está bem necessitada). 

Um dia, sob o peso dessa responsabilidade, o teste é para retirar carros e salvar pessoas numa ilha artificial em Singapura que está sendo invadida por um tsunami. Seu desempenho é tão bom, que o menino é convidado a ir à China visitar a sede da fábrica. É lá que ele descobre que não está num jogo: está pilotando carros de verdade remotamente, em situação de risco real para as pessoas, em que a inteligência artificial não tem como tomar decisões complexas. O rapaz se assusta com a responsabilidade e pede para deixar o emprego, mas não sem antes salvar a vida de várias pessoas num atentado terrorista.

Análise

Aqui o autor fala da complexidade, dos níveis e limitações dos veículos autônomos, do horizonte ainda distante da autonomia total e suas razões. Também fala sobre cidades inteligentes, bem como questões éticas e sociais.

7. Genocídio quântico

Essa é a história mais complexa da série (pelo menos até aqui). Robin tem 26 anos e é uma hacker “contratada” por uma empresa gigante e poderosa para encobrir crimes de vários tipos. Ela foi chantageada para aceitar o trabalho, sob pena de ter toda a sua família morta. Xavier trabalha no centro europeu de investigação de cibercrimes e sua motivação é resgatar sua irmã, raptada e mantida como escrava pela empresa para a qual Robin trabalha. 

Os dois se encontram quando atentados executados por drones acontece simultaneamente em vários lugares do mundo. Xavier desconfia de um professor alemão, que perdeu sua família num incêndio provocado por um desastre climático e não se conforma como ninguém está se mexendo para parar isso. O sujeito bola então um plano: desligar os servidores, cabos submarinos e satélites de todo o planeta para que os seres humanos voltem à era pré internet — a ideia é desacelerar o desenvolvimento e o suicídio da humanidade. 

Análise

Aqui o autor explica o atual estado da arte dos computadores quânticos, fala sobre a segurança de bitcoins, armas atômicas e ameaças existenciais. O mais impressionante é que tudo é muito crível.

8. Salvador de empregos

Para mim, essa foi a história mais fraquinha; achei-a meio preguiçosa… mas vamos lá!

Jennifer é trainee de uma empresa de recolocação e começa com ela no primeiro dia de trabalho assistindo a um vídeo de como surgiu a empresa; depois da pandemia de 2021, houve muitas demissões em massa, que só aumentaram com o avanço da inteligência artificial generativa. Durante um tempo, o governo tentou implementar a renda universal básica, mas as pessoas ficaram preguiçosas e começaram a jogar e a se embebedar. 

Sério isso? A história se passa nos Estados Unidos e é escrita por um chinês; duas culturas onde o valor da pessoa é definido pelo trabalho, como se não houvesse nada mais importante a se fazer na vida. Antes da revolução industrial, as pessoas não viviam?

Bom, outro incômodo foi que a mocinha, que sonha ser assistente do dono da empresa (gente, esse enredo é muito século XX) consegue a vaga porque toma a iniciativa de convidá-lo para um café e contar a sua história (Oi?). Ela anda pela cidade vestindo terninho de executiva e carregando seu telefone celular (lembre-se que a história se passa em 2041!).

Enfim, conta o drama das pessoas sendo demitidas e o quão difícil é encontrar uma posição que, depois de alguns meses ou anos, também será extinta e substituída por uma máquina, até que, no final, os próprios protagonistas são vítimas de seu próprio feitiço. 

Uma releitura bem preguiçosa do filme “Up in the air”estrelado por George Clooney.

Análise

O autor fala de empregos deslocados pela IA, sobre renda básica universal (sem considerar os resultados reais nos lugares onde ela já foi testada), o que a IA não pode fazer e suas limitações. Ele reforça que somente o ser humano é capaz de ser criativo, empático e destreza (trabalho manual onde a visão é sincronizada com a mão em ambientes desconhecidos e desestruturados). 

E Kai-Fu defende que a solução é o que ele chama de 3Rs: Reaprender, Recalibrar e Renascer. Enfim, achei que a análise, muito boa, não fecha muito com a história. 

9. Ilha da felicidade

A história da vez se passa em Doha, no Qatar, onde um milionário russo, daqueles ícones da indústria da tecnologia, chega atendendo a um convite misterioso. Alguém o convida para uma experiência de busca da felicidade e ele, entediado com o rumo que a vida está tomando, topa. 

Gente, qual a chance de um milionário aceitar um convite sem saber de quem é? E mais: ao chegar no lugar, uma ilha artificial, ele assina um contrato onde torna disponível todos os seus dados pessoais e bens até o final da experiência. Ok, vamos desconsiderar essa parte para não forçar a amizade.

Bom, no lugar tem outros convidados: um artista digital, uma atriz, um neurobiologista, enfim, vários expoentes, cada um na sua área. Quase todos celebridades, como ele mesmo.

Viktor, o nome do homem, fica sabendo que tudo naquela ilha é customizado para que ele alcance a felicidade. A princesa da família real, Akilah, preparou esse experimento junto com seu irmão, e o objetivo deles é usar a inteligência artificial para trazer felicidade às pessoas. A princesa, não por acaso, estudou em Londres e é doutora em psicologia, com especialidade na felicidade. 

Eis que todo projeto do ambiente muda dinamicamente conforme o humor e as informações vitais que a IA coleta no corpo de Viktor. O resultado é uma situação perfeitamente confortável para absolutamente todos os seus sentidos: cores, temperatura, comida, sons, tudo perfeito. Porém, um tanto tedioso, como a princesa já desconfiava (ela estudou isso, né?).

Bom, no final há uma mudança de roteiro (pelo menos para Viktor) e o plano final é revelado (o resultado dependeu totalmente das reações de Viktor aos estímulos, incluindo problemas e desafios).

O que mais me chamou atenção (e, na minha opinião, uma grande falha), foi que o experimento era totalmente individual. Sendo que a gente sabe que ser feliz de maneira isolada, sem amigos, pessoas em quem você confia e que ficam felizes junto com você, é meio difícil, né?

 Análise

Nessa parte o autor fala sobre a relação entre a IA e a felicidade (que é um conceito extremamente subjetivo e variável no tempo e no contexto). Disserta também sobre a Regulação Geral da Proteção de dados (em 2041 nenhum dos personagens parece muito preocupado com isso), sobre dados pessoais e privacidade, e sobre ambientes confiáveis, e como esses fatores podem se desdobrar nas próximas décadas.

10. Sonho de plenitude

Keira tem raízes nos povos originários da Austrália (ouvi dizer que a palavra aborígene não se usa mais, porém, o autor utiliza no livro). Ela está indo fazer um trabalho como cuidadora num abrigo de idosos para ganhar créditos sociais (muito parecido com um dos episódios da série Black Mirror da Netflix e que foi de fato implementado na China) — quanto mais boas ações, trabalhos voluntários e atitudes gentis você fizer, mais ganha créditos, que podem ser trocados por serviços ou preferência numa vaga de emprego, por exemplo. 

O sonho de Keira é trabalhar com realidade aumentada, mas, numa sociedade racista (sim, em 2041), as chances são muito menores. 

O trabalho de Keira é cuidar de Joanna, que, com apenas 71 anos, está numa cadeira de rodas e iniciando um processo de desenvolvimento da doença de Alzheimer (ué, ainda não acharam a cura?). Joanna é bióloga e desenvolveu um processo que salvou a grande barreira de corais da Austrália, porém, é orgulhosa e bem difícil de lidar.

As duas têm conflitos de todo tipo, inclusive porque Joanna não quer avaliar bem os ótimos serviços de Keira, prejudicando-a  nos seus planos.

Análise

Aqui se discute a questão da desigualdade ainda não resolvida pelas questões de racismo, os sistemas de avaliação biológicos, novos modelos econômicos e o futuro do dinheiro. 

Conclusões

Achei a ideia de misturar ficção e análise técnica excelente, pois fica bem mais agradável de mergulhar nesses temas, às vezes bem áridos.

Apesar de reconhecer alguns riscos das novas tecnologias, o autor é bem otimista e, em alguns momentos, eu diria que ele tem uma visão até romantizada. 

Acredito que esse livro é imprescindível por quem se interessa pelos desdobramentos que teremos daqui em diante, não apenas porque consegue fazer uma apanhado geral das tecnologias já disponíveis, como também apresentar uma visão bem realista de onde podemos chegar nos próximos 20 anos.

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