Tudo o que eu sabia sobre o Walter Hugo Mãe é que ele era um escritor português muito premiado e mais nada.
Agora, pesquisando um pouco mais, descobri que o moço, que na verdade nasceu em Angola, também é poeta, compositor, autor infantil, artista plástico, apresentador de televisão e cantor. E ele só tem 51 anos!
Pois quando o romance “A máquina de fazer espanhóis” foi escolhido como o livro desse mês do Clube do Livro de Münster, fiquei muito feliz! A edição da Biblioteca Azul é uma das mais lindas que já vi; o livro tem corte colorido (a lateral das páginas é pink), ilustrações belíssimas e, supremo luxo, um prefácio carinhoso de Caetano Veloso.
Walter me lembra muito Saramago an escrita (Caetano também observou). Ele tem capítulos inteiros sem pontuação e só com letras minúsculas. Tem que ser muito bom para fazer isso sem complicar demais a leitura.
O livro conta a história do senhor Antonio Jorge da Silva, que, aos 84 anos, vai para um asilo, logo após a morte da esposa, Laura. Sua filha Eliza é quem assume a internação, pois seu outro filho, Ricardo, simplesmente desaparece e não quer mais saber do pai.
O senhor Silva, como é conhecido no asilo Feliz Idade, chega lá cheio de amargura e tristeza. Está revoltadíssimo com a perda da esposa e sofre com a solidão e a angústia de ter perdido praticamente tudo; ficou só com o seu quarto, suas roupas e uma santa de gesso (sendo que ele é ateu).
Silva reflete sobre a sua vida, quase toda percorrida durante a ditadura de Salazar, em Portugal. Como toda ditadura, o ambiente era de medo, com liberdade zero. E, na sua função de barbeiro, ele se descobre um covarde, completamente abduzido pelo conformismo e por normalizar absurdo que ele sabe ser errados, como denunciar pessoas contrárias ao regime opressor. Na velhice ele é acometido pelo nojo, pela decepção, pelo medo, pela insegurança e fragilidade do corpo e da mente.
Supreendentemente, para ele, consegue fazer amigos no asilo que não foi capaz de fazer durante toda a vida. A vulnerabilidade e a certeza de que todos ali estão esperando o seu dia de ir para o cemitério visível pelas janelas do bloco ao lado, acaba os unindo.
Um dos velhinhos, prestes a completar 100 anos, é conhecido por ter sido cliente da famosa tabacaria que inspirou o poema de Fernando Pessoa e ter virado personagem dessa obra famosíssima. Isso faz dele uma espécie de celebridade, pois foi quem mais chegou perto de deixar algo para a história.
A angústia, os pesadelos, as mortes e doenças que fazem parte do dia-a-dia dessas pessoas, confinadas num local a contragosto, marcam a narrativa e faz a gente pensar na finitude da vida e no destino.
O título do livro remete à vontade que os portugueses tinham de ser espanhóis, especialmente nesse período da ditadura, onde os mais abastados conseguiam fugir e ter filhos na França ou Espanha. Seus vizinhos espanhóis, do ponto de vista dos portugueses, é que eram eram europeus de verdade: tinham liberdade, economia forte, eram respeitados. Ironicamente, o único espanhol do abrigo jurava ser português com muito orgulho.
Até um crime aparece no meio da história (um incêndio no andar onde estão os acamados), mas, até onde acompanhei, não é desvendado. Juro que fiquei sem entender essa parte.
Olha, é uma leitura triste, mas uma reflexão necessária, não só sobre a velhice, mas também na participação de cada um para a manutenção de regimes totalitários.
A redação é belíssima, a escolha das palavras muito cuidadosa e precisa. Realmente uma obra e tanto. Um caso clássico onde a edição (capa, encadernação, etc) refletem a excelência do conteúdo.
Recomendo muitíssimo.
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