O pacto da água

Eu me vi obrigada a comprar “The covenant of water” (tradução livre: “O pacto da água”), de Abraham Verghese, porque todo lugar que eu ia nas redes sociais tinha gente elogiando a obra: Bill Gates, Oprah Winfrey, Goodreads, Bookster e mais um monte de gente. Enfim, não tinha como.

O negócio é um tijolão com mais de 700 páginas, mas podemos chamá-lo de buraco negro; ele suga você para dentro da história e você vai passar a semana na Índia, visitando cidades menos famosas como Kerala, Cochin e Madras, bem no sul (adoro livro que tem mapa para a pessoa se localizar).

A história começa em 1900 com uma menina de 12 anos de idade indo de barco sozinha, sem a família, para encontrar seu futuro marido, de 40 anos. Nesse ponto, bem no começo, juro que pensei: não sei se quero ler o resto. Ainda bem que continuei.

Sobre a menina: ela foi criada por pais amorosos e era filha única. Ótima aluna na escola, sempre seguia os conselhos de seu pai para estudar muito e não depender de ninguém. Ela queria ser médica e por isso caprichava nas lições que a professora dava. Só que, aos 12 anos de idade, o pai da menina morre. Na Índia, pelo menos naquele tempo (tomara que tenha mudado), as mulheres não tinham direito a nada. Assim, o irmão do pai, um sujeitinho que nunca vi, mas já odeio, tomou posse da casa e de todos os pertences e arranjou um casamento para se livrar da menina. A mãe ficou na casa como empregada, vivendo de restos. Olha que coisa revoltante.

Agora imagina o choque; essa menina faz uma longa viagem de barco com gente que ela não conhece para encontrar o futuro marido. Por sorte, chegando lá, a irmã do futuro marido, a recebe com muito carinho. O marido perdeu a mulher no parto e não consegue cuidar sozinho do filho de 3 anos. Por isso “arrumou” uma esposa. A menina então aprende a cuidar da casa com a ajuda da cunhada e desenvolve um amor gigante pelo menino. A cunhada fica só duas semanas e precisa ir embora cuidar da própria família, de maneira que ela fica sozinha numa casa enorme, com um marido e um filho.

O marido é calado e trabalha muito, mas parece ser boa pessoa. Ele respeita a menina e vão se conhecendo muito aos poucos. Eles quase não conversam, mas a convivência é boa e a vida segue. A menina só fica muito preocupada com a mãe, de quem não tem notícias, mas pressente que não está bem. Ela e o marido acabam desenvolvendo um companheirismo genuíno apesar da diferença enorme de idade; ele tenta agradá-la de todas as maneiras, mas sempre muito discretamente — ele observa que ela gosta de ler, então assina o jornal que a moça lê todos os dias para ele no café da manhã. Ela adora ir na igreja, mas ele brigou com Deus desde que a mulher morreu. Então ele a leva, mas fica esperando do lado de fora. Notando sua preocupação com a mãe, ele pede para o seu caseiro levá-la em visita, onde ela resgata a senhora que está doente e fraca devido aos maus tratos. A mãe dela vai morar com eles e a vida segue, como o menino crescendo. 

Tanto o pai como o menino têm uma estranha aversão à água, além de não escutarem bem; por isso o marido não foi buscá-la de barco para o casamento (e foi a pé até a igreja, apesar de ser muito mais perto indo pelo rio). 

Aliás, uma das coisas que amei nesse livro, além da narrativa fluida, é a história da Índia, desde a sua colonização pelos britânicos e todo o impacto na cultura local, a imposição do idioma e a inserção de mais uma categoria de castas (a dos brancos colonizadores) numa sociedade já tão dividida socialmente. Ele fala do cristianismo na região (nunca soube que havia cristãos na Índia), do sistema de poder (corrupto, pra variar), das comidas, das roupas, dos hábitos. Uma grande e riquíssima viagem!

Voltando à história, na pré-adolescência, eis que o menino morre afogado numa poça de lama, no meio de uma brincadeira com os amigos.

O choque é enorme, o pai fica inconsolável, e a menina descobre um segredo de família. O marido acaba mostrando para ela um mapa que seria um arremedo de árvore genealógica e ela percebe que em todas as gerações da família há pessoas que morrem afogadas (principalmente homens) e essa aversão à água tem motivo. Ele conta que é analfabeto porque foi proibido de ir para a escola (precisava ir de barco); os pais temiam pela segurança. Ele foi ficando cada vez mais sozinho e calado, não podia brincar como o filho, que pelo menos viveu sua vidinha, mesmo que curta. A dor enorme acabou unindo o casal, que desenvolveu um companheirismo e um amor profundo. Só aos 16 anos eles transam (com o consentimento dela) e aí tiveram mais uma menina e um rapaz.  A gente percebe toda a vulnerabilidade de pessoas que vivem longe da cidade, e mesmo que numa fazenda com outras pessoas e com alguns recursos, não têm acesso a cuidados básicos de saúde. 

Em paralelo com a história da menina, tem também a de dois médicos; um escocês de Glasgow, filho de uma mãe solo e uma avó narcisista, que ganha uma bolsa de estudos numa universidade católica, o que o faz ser preterido nos maiores hospitais britânicos onde quer fazer residência e se tornar cirurgião. Até que alguém lhe sugere fazer residência em Madras, onde a coroa britânica controla tudo, inclusive os hospitais. O outro é um sueco cirurgião especialista em mãos que funda um leprosário perto de uma fazenda de amigos.

As histórias desses dois e das próximas gerações da família onde aquela menina se torna matriarca acabam se cruzando de maneira inusitada. 

Esgotada com tantas mortes e sofrimento em tantas gerações provocadas pela “condição”, que é como essa menina, agora uma mulher feita, chama essa particular aversão à água, ela clama e ora para que seja enviado alguém que saiba como acabar com isso e livre a família dessa maldição. 

Essa ajuda vem de onde ela menos espera: a neta, filha sobrevivente de seu filho (ele perdeu o primogênito para as águas também), resolve se tornar médica e pesquisar mais a respeito, com a ajuda de colegas e professores. Ela descobre uma predisposição genética para um tumor na cabeça que altera a percepção, afeta a audição e às vezes afeta a personalidade. 

No processo, ela descobre um grande segredo, muito maior do que a “condição”. É o maior plot twist dessa história e acontece nos capítulos finais.

Olha, amei a viagem de verdade. Tem amor profundo e sincero, companheirismo, desafios, muito drama, história, cultura, política, arte, culinária, medicina, geografia e romances belíssimos. O autor, além de descendente de indianos, é também médico, o que explica a proficiência em assuntos tão complexos e tão bem descritos em detalhes.

É daqueles livros que, depois de terminar, a gente ainda passa vários dias pensando nele; nas tantas histórias lindas de amor, que aparece de várias maneiras. E a história de amor mais linda que já li em toda a minha vida (é sério, não tem como não se emocionar) que fica justamente no final. Ela envolve um casal, mas também várias pessoas impactadas com a história deles. É tudo muito forte, intenso e lindo.

Com certeza isso vai virar série, porque tem todos os ingredientes necessários, mas penso que seria uma perda assisti-la sem ter lido o livro antes. 

Vai lá e mergulha (sem o risco de se afogar). Vai ser inesquecível.

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