Nas últimas semanas temos acompanhado angustiados o desenrolar do desastre climático do Rio Grande do Sul; o coração fica apertado e a emoção toma conta ao ver tantos vídeos de gente ajudando. Mas também dá revolta em ver gente criando e disseminando fake news, assim como pessoas distorcendo os acontecimentos por questões políticas. O fato é que nenhum governo até agora levou realmente a sério a questão climática, mas alguns foram piores que outros. Enfim, mas não é o tema aqui. Toquei nesse assunto porque nessas horas dá um certo pessimismo para onde caminha a humanidade.
Esse livro já estava na minha pilha há muito tempo esperando a vez dele, coitado. Decidi por ele agora porque estou realmente precisando de esperança. E a julgar pelo outro livro do mesmo autor que já resenhei aqui (Utopia para realistas), “Humankind: a hopeful history“, de Rutger Bregman, achei que ia acalmar um pouco o coração. Acertei.
É uma pena que o jogo de palavras human (humano) + kind (nesse caso usado como tipo, espécie, mas também tem o significado de gentil, amigável, generoso) se perca na tradução literal (humanidade), porque é essa a ideia central do livro: os seres humanos são majoritariamente bons e generosos.
Pelo que a gente lê por aí, custa a acreditar, né?
Mas no capítulo 1, sobre o novo realismo, a gente começa a entender a linha de argumentação.
DOIS PLANETAS
Imagine que um avião cheio de passageiros cai e se quebra em três partes. A cabine fica coberta de fumaça e os passageiros se dão conta que vai dar ruim e precisam sair rápido.
No Planeta A, os passageiros primeiro se viram para seus vizinhos perguntando se eles estão ok. Os que precisam de ajuda recebem mais atenção e saem primeiro.
No Planeta B, é cada um por si, todos se debatendo loucamente em procurando a saída desesperados. Crianças e idosos são atropelados e deixados pra trás.
Em que planeta você vive? Segundo o autor, pesquisas mostram que 97% diriam que estão no Planeta B, não importa se de direita ou de esquerda, se rico ou pobre, se cheio de diplomas ou analfabeto, em qualquer lugar do mundo.
Mas fatos mostram o contrário. Pense no naufrágio do Titanic; mesmo nessa situação, a evacuação seguiu de forma ordeira e coordenada. Testemunhas dizem que não houve pânico ou histeria. Mesma coisa no ataque de 11 de setembro em New York. Pessoas desceram as escadas sem atropelar os outros e ajudando quem tinha dificuldades.
Rutger diz que o mito persistente de que a natureza humana se revela egoísta, agressiva e sujeita a ataques de pânico em situações de emergência, foi denominada pelo biólogo holandês Frans de Waal de teoria Veneer (veneer quer dizer folheado, cheio de camadas finas e frágeis prestes a se romper com qualquer provocação, mas não achei uma palavra que coubesse na tradução; então vou usar no original mesmo — não faço ideia do que o tradutor para o português usou, mas acho folheado muito esquisito). Mas na verdade, quando a crise explode, o ser humano mostra o seu melhor lado. E estamos vendo isso no Rio Grande do Sul agora.
Ao contrário do que a gente vê no cinema, o Centro de Pesquisa de Desastres da Universidade de Delaware, que estuda o tema desde 1963, conclui em seus estudos, que em todas as situações de crise (furacões, enchentes, atentados, bombardeios, etc) os índices de assassinato, roubo e estupro geralmente caem em vez de subir.
No caso do furacão Katrina e em muitos outros, os cientistas concluem que em situação de pânico, as pessoas vêem a humanidade toda à sua própria imagem; ditadores, déspotas e governantes inescrupulosos tendem a usar a força bruta para prevenir cenários que só existem na cabeça deles, entendendo que a maioria das pessoas agiria de maneira egoísta como eles próprios nessa situação.
Em geral, a sociedade civil organizada consegue trabalhar de maneira colaborativa sem o uso da força.
Outra coisa importante a se observar é o fenômeno da profecia auto-realizável: se você convence todos os clientes que um banco vai falir, eles tiram todo o dinheiro da conta e o banco realmente vai à falência. Há inúmeros estudos que mostram evidências em todas as áreas, inclusive, uma delas é conhecida como efeito placebo.
Em pesquisas com remédios, se a pessoa acredita que aquele remédio vai salvá-la, acontece de funcionar mesmo se o comprimido for somente farinha. Se a maneira de ministrar a dose for por injeção, o efeito é ainda maior. Por isso as pesquisas sérias usam o teste duplo cego sempre; com uma parte da amostra recebendo remédios verdadeiros e outra parte, o placebo (substância sem eficácia).
Pois no caso do comportamento humano, o autor diz que as nossas crenças pessimistas acaba se tornando um efeito nocebo (o placebo no sentido negativo). A gente recebe o que espera receber e as ideias nunca são somente ideias; elas são crenças que muitas vezes moldam a nossa visão e a gente acaba achando o que está buscando mesmo.
Rutger deixa claro: ele não está dizendo que os humanos são todos angelicais e bonzinhos. Somos todos seres muito complexos, criaturas que não têm só um lado bom ou ruim.
POR QUE ESSE PESSIMISMO TODO?
Mas a questão que se coloca aqui é: por que temos uma visão tão negativa da humanidade?
As observações e estudos indicam que a gente tende a confiar em quem está mais próximo: família, amigos, vizinhos, a comunidade. Mas quando se aplica à humanidade como um todo, a gente sempre pensa o pior.
Os religiosos sempre miram no pecado quando falam de seres humanos. Os capitalistas pensam que somos movidos pelo nosso interesse próprio. Ambientalistas acreditam que o ser humano é uma praga, um câncer para o planeta. Por que uma visão tão pessimista?
E aqui o autor faz uma pergunta bem interessante: se os cientistas descobrissem uma droga que alterasse a nossa percepção do risco, ansiedade, baixasse o nível de humor, provocasse desesperança e um sentimento de raiva e hostilidade contra as outras pessoas; se você ficasse menos sensível às necessidades dos outros humanos e normalizasse coisas absurdas. Você acha que essa droga deveria ser liberada ou proibida? Teria limite mínimo de idade?
Pois essa droga é consumida por todas nós e se chama notícias, principalmente as disseminadas nas redes sociais. Há vários estudos que mostram que a exposição a elas ameaça a nossa saúde mental. Quanto mais se lê as notícias, mais se acredita que o ser humano não presta mesmo, é um caso perdido, que o mundo não tem mais jeito.
Mas se a gente olhar os indicadores objetivos, fica claro que o mundo não está piorando; os índices de pobreza extrema, mortalidade devido a doenças e desastres naturais não pioraram.
A questão é que notícias são feitas sobre fatos excepcionais, não sobre as coisas corriqueiras do dia-a-dia. E quanto mais excepcional é o evento: um ataque terrorista, um acidente aéreo, um desastre natural, maior é a repercussão (e o número de likes).
Um exemplo claro é o dos acidentes aéreos. Eles são raríssimos se a gente considerar que, segundo um estudo da Universidade de Harvard, a chance de um avião sofrer um acidente é de uma em 1,2 milhões de voos, sendo 1 em 11 milhões de chances de alguém morrer. Essa chance é 200 mil vezes maior para um acidente de carro. Mesmo assim, muito mais gente tem medo de andar de avião do que de carro.
Um dos motivos de a gente ser tão afetado por essas notícias é que sofremos do que os psicólogos chamam de viés da negatividade; nós somos mais sensibilizados por más notícias do que por boas. É fácil constatar isso na vida prática: você recebe mil elogios por um trabalho, mas uma pessoa faz críticas pesadas, e o que acontece? Sua atenção vai toda para essa crítica.
Além disso, temos também o viés da disponibilidade. Se a gente é bombardeado o tempo todo com notícias ruins, são elas as que estarão mais disponíveis na nossa memória. Além disso, antigamente os jornalistas escreviam para veículos de massa sem conhecer muito o perfil dos seus leitores; mas o Facebook, twitter, Instagram e outras redes sociais, conhecem cada usuário em profundidade.
Eles sabem exatamente o que mais nos choca e nos emociona, e, principalmente, o que faz você comentar, engajar e repostar. E todo mundo sabe que nada engaja tanto e dá tanto dinheiro para essas plataformas do que as fake news.
No livro o autor cita um novelista suíço que diz que “as notícias são para a mente o que o açúcar é para o corpo”.
Aí, Rotges, que parece ser um sujeito que domina a fina ironia, diz que fez um experimento e parou um pouco de ler notícias; foi ler livros. Só então se deu conta: os livros eram sobre guerras, catástrofes e assassinatos. Mesmo os de ciência eram “O gene egoísta”, “O assassino da porta ao lado” e “Machos demoníacos”…hahahahah
Os livros de economia sempre falavam sobre concorrência, como deixar os competidores para trás, um monte de teorias sobre riquezas e tais. Eis que um professor de economia fez um estudo em 1990 e descobriu uma coisa interessante sobre generosidade em seus estudantes: quanto mais eles avançavam no curso e estudavam mais economia, mais egoístas iam se tornando!
Os maiores filósofos do ocidente falam sobre o egoísmo humano; o cristianismo diz que todos são pecadores, inclusive as crianças recém-nascidas, que precisam ser batizadas; os criadores da teoria política, todos concordavam com a malvadeza da espécie.
John Adams, um dos fundadores da democracia americana afirma que todo homem pode se transformar num tirano, se tiver a chance. Freud dizia que somos descendentes de uma série infinita de gerações de assassinos.
HOBBES X ROUSSEAU
A natureza da espécie humana vem sendo discutida há muito tempo pelos filósofos e o autor apresenta os dois ícones opostos sob esse aspecto. Enquanto Thomas Hobbes era um pessimista e dizia que os homens eram maus por definição e que apenas a sociedade civil, com suas leis e regras, poderia dominar esses instintos, Jean-Jacques Rousseau, dizia o oposto: o ser humano é bom na sua essência — a vida em sociedade e a chamada civilização é que o corrompe e o arruina (que leva alguém a matar numa guerra, por exemplo).
Hobbes acha que precisamos de leis, regras e costumes rígidos; Rousseau acha que precisamos de liberdade para ser quem somos, na nossa essência.
O fato é que, se a história do planeta terra coubesse em um ano, o ser humano entraria somente às 11 horas da noite de 31 de dezembro e a agricultura, quando faltassem apenas 2 minutos para a meia noite. Ou seja, somos muito jovens do ponto de vista evolutivo. A evolução demanda muito tempo, muitos problemas para resolver e muito sofrimento.
O interessante é que, geneticamente, somos apenas 1% diferentes dos chimpanzés. E, em alguns aspectos, como a memória de curto prazo, os chimpanzés batem os humanos nos testes. Então por que os humanos estão dominando o planeta?
Há várias teorias; alguns estudiosos acreditam que a nossa capacidade de contar histórias (em última instância, mentiras), exigem mais do nosso cérebro e o força a se desenvolver. Mas testes mostram que os símios conseguem blefar tão bem quanto nós. Além disso, se a gente foi feito para mentir, porque o ser humano é o único animal que cora? Seria uma função totalmente fora de propósito.
RAPOSAS QUE VIRAM CACHORROS
Um experimento de uma cientista russa mostrou que, se você pegar raposas selvagens e, usando a teoria da evolução, selecionar apenas as mais amigáveis para se reproduzir, com o tempo (o experimento levou décadas) elas vão se comportar como cachorros domésticos. Fofinhas, queridas e e sem sombra alguma de selvageria ou agressividade.
E sabe o que mais? Seguindo o mesmo raciocínio, um cientista americano descobriu que essa simpatia é uma habilidade social e que, acredite ou não, nos faz mais inteligentes.
O Homo Sapiens deixou o Neadertal para trás, não porque era mais inteligente (há evidências que os Neandertais eram inteligentes também), mas porque eram mais sociáveis. Se você é mais sociável, você consegue aprender com os outros (e ensinar também), fazendo o conhecimento do grupo ficar maior e evoluir. Gênios solitários não contribuem tanto para a sociedade do que aqueles que compartilham o que sabem e trabalham em colaboração. Até aí, nenhuma novidade; há vários e sensacionais livros que afirmam o mesmo: a inteligência individual é superestimada.
Isso explica porque a gente fica vermelho, porque temos a parte branca dos olhos (somos o único animal que tem — assim nossos companheiros conseguem saber para onde estamos olhando e conseguem se conectar melhor conosco). Nós arqueamos as sobrancelhas e damos vários sinais de como estamos nos sentindo; em termos de emoções, o ser humano é um livro aberto se comparado com outros animais.
Isso fez com que a gente fosse capaz de colaborar e fazer nosso conhecimento evoluir.
Mas ué? Se o ser humano é maligno na sua essência, como seu corpo todo evoluiu para ser tão simpático, amigável e colaborativo?
E o autor continua a busca de respostas para entender como viemos parar aqui, nesse mundo confuso onde convivem lado a lado doadores de órgãos e disseminadores de fake news.
A MALDIÇÃO DA CIVILIZAÇÃO
Essa parte eu achei muito interessante. É que os estudiosos descobriram que quando os seres humanos eram nômades e basicamente viviam da caça e da coleta de frutas e vegetais que encontravam pelo caminho, a tendência era confiar em todos. E fazia sentido. Se um grupo estava caminhando e encontrava outro, quaisquer dos integrantes podiam trocar de grupo e ampliar seus horizontes.
Há evidências de que, nessa época, ao contrário do que os desenhos dos homens das cavernas mostram, mulheres e homens viviam em igualdade. Os filhos eram cuidados por toda a tribo e não importava muito quem era o pai. O autor cita, inclusive, a fala de um homem de uma tribo isolada da Tanzânia (bem mais recente, mas ainda com a cultura nômade) que respondeu, quando o pesquisador francês mostrou-se preocupado com os perigos da infidelidade: “Não faz sentido; vocês, franceses, amam apenas o seu próprio filho. Mas nós amamos todas as crianças.”
Inclusive, estudiosos descobriram que em sociedades dominadas por homens, os líderes convivem e compartilhavam seu dia-a-dia apenas com outros homens. Já nas sociedades onde o poder era compartilhado com mulheres, a convivência era mais diversa. E a gente viu que, quanto mais variada é a rede social, mais inteligente o grupo se torna.
Mas o que aconteceu?
Numa resposta curta: a civilização.
Mas vamos por partes. Com o fim da era do gelo e o clima ficando mais propício na região entre os rios Tigre e Eufrates, os nômades viram que podiam plantar e colher. Foi o começo do fim.
Com os povoados, veio também a noção de propriedade. Surgiu a desigualdade, que antes não existia. Tendo bens para defender, os estranhos não eram mais amigos; a humanidade, que era tão cosmopolita, virou xenófoba. Alianças tiveram que ser feitas para defender a propriedade. Mulheres passaram a ser parte da propriedade como os bois e porcos. E a obsessão pela virgindade começou a fazer sentido, pois o filho iria herdar as propriedades do pai — além disso, tem uma história (ainda mais) horrível por trás.
É que na vida nômade, com uma dieta variável, exercícios diários e pessoas cuidando umas das outras, simplesmente não existiam doenças, muito menos venéreas. Com a domesticação de animais, veio também a zoofilia; homens transando com cabras, bezerras e todo tipo de bicho, com micróbios e bactérias diferentes.
O sistema imunológico ficou afetado pela dieta restrita (trigo e carne). Um por cento das pessoas começou a oprimir e escravizar os outros 99%. Vieram guerras, inventaram-se os reis e os generais. E nasceu o que a gente conhece hoje por patriarcado.
O que a gente comemora como marcos da civilização, como a invenção do dinheiro, da escrita e das leis, são, na verdade, instrumentos de opressão muito eficientes. O dinheiro foi inventado para facilitar o comércio e a coleta de impostos, assim como a escrita. As primeiras leis ocupavam-se em punir quem ajudava escravos a fugir.
Ah, mas hoje em dia a gente tem uma vida boa. Sim, temos. Mas imagine que essa história tem dezenas de milhares de anos, e na maior parte dela, a maior parte da população só sofreu; mais de 80% dos viventes do planeta viviam na mais absoluta miséria. Somente nos últimos 200 anos (no total, seria o equivalente aos últimos 5 minutos, num dia de 24 horas) a civilização nos trouxe vacinas e tecnologia para melhorar a vida da maior parte das pessoas; tecnicamente a escravidão foi abolida e apenas 10% do planeta ainda vive na miséria.
Com isso, o autor conclui duas coisas: Rosseau tinha razão; a civilização estragou a humanidade. Mas a segunda conclusão é mais animadora: se em 200 anos conseguimos virar o jogo de uma maneira tão radical, do que seremos capazes nos próximos 200?
A BANALIDADE DO MAL
O termo, criado pela filósofa Hannah Arendt, sempre volta à tona quando a gente pensa nos horrores do holocausto; pessoas comuns, como nossos vizinhos, foram capazes de tanta barbaridade. Com certeza o ser humano é mau e só precisa de uma oportunidade para mostrar isso. Será?
Aqui o Rutger é caprichoso: ele pega quatro ou cinco dos artigos científicos mais famosos que provam a maldade humana (eu já conhecia quase todos de outros livros) e simplesmente vai atrás de mais detalhes.
Porque se algum autor cita um estudo, por exemplo, em que voluntários toparam eletrocutar desconhecidos apenas porque estavam cumprindo ordens, a gente simplesmente acredita e dissemina como se fosse verdade; afinal, foram cientistas que chegaram a essa conclusão. Mas essa é a beleza da ciência; ela foi feita para a gente duvidar.
E Bregman fez exatamente isso. Pois não é que ele descobriu inconsistências, falhas de método, viés do pesquisador e até mau caratismo mesmo em todos os casos? Cientistas são seres humanos que também têm suas próprias crenças e alguns usam experimentos para provar suas ideias. Quando o experimento não dá o resultado esperado, eles simplesmente fazem isso que você está pensando; mentem.
Por isso o método científico é tão legal; outros podem reproduzir o experimento e encontrar resultados diferentes. A questão é que isso não vira notícia, né? Imagina uma manchete descobrindo que os seres humanos são gente boa? Quem iria ler? Muito mais interessante acreditar que somos uns sádicos que batem aleatoriamente nos outros assim que colocam uma farda na gente.
A discussão sobre a capacidade que as pessoas comuns tiveram de cometer atrocidades nas guerras (incluindo o período do holocausto) é bastante longa; mas em resumo, os perpetradores estavam mais preocupados em proteger o amigo que lutava ao lado dele do que o conceito ou as ideias que os generais da guerra defendiam. Mas essa parte é bem complexa e longa e recomendo que se leia o livro com bastante calma e mente aberta.
Mas o capítulo que me deixou bem impactado é a que fala do poder.
O PODER CORROMPE. SERÁ?
Pesquisas mostram que se você está num grupo colaborativo, agir com prepotência, como se fosse superior aos demais, é ganhar a ficha para cair fora. Nos grupos nômades, não tinha a menor chance de dividir comida e cuidar de um escroto. A liderança era temporária e alternada; as pessoas mais bacanas e colaborativas tinham mais chances de serem escolhidas pelo grupo.
Mas então, como explicar o comportamento do seu chefe, que inclusive foi promovido no mês passado?
Pois é, em geral, num contexto espontâneo, as pessoas mais sociáveis e empáticas são as escolhidas para a liderança. Mas o que acontece quando elas chegam lá?
Bem, voltemos às pesquisas.
O cientista americano chamado Keltner resolveu fazer um experimento: pegava 4 pessoas aleatórias e colocava numa sala com um prato contendo 5 biscoitos (cookies). Cada pessoa pegava um e, em todas as situações, ninguém pegava o último biscoito. Ou, no máximo, propunha repartir o biscoito entre todos. Normal; na vida real geralmente é assim.
Massssssss…. numa variação desse experimento, antes do grupo entrar na sala, o orientador escolhia alguém aleatoriamente e dizia que essa pessoa seria a líder do experimento. Quer saber? Em praticamente todos os casos, o “líder” ficou com o quinto biscoito sem nenhum constrangimento. Inclusive, comiam de maneira acintosa mesmo, fazendo mais barulho e espalhando farelos.
A questão, examinada mais a fundo depois, é que o poder mexe com a química do cérebro. A pessoa realmente se sente mais merecedora que os outros. Outro experimento: peça para alguém dirigir um carro popular e veja como ele se comporta em relação aos pedestres, por exemplo. Normal, civilizado, dentro das regras. Agora dê um Mercedes último tipo, caríssimo. O motorista se transforma em outra pessoa; o cérebro dele se transforma como se tivesse sofrido algum dano. A pessoa praticamente perde a capacidade de empatizar e, pasme, perde até a capacidade de corar! E quanto mais exposta a situações de poder sobre os outros, mais o cérebro vai se moldando e se acostumando com a situação. Alguns são mais discretos, comedidos e tentam agira naturalmente. Mas tem gente que se perde bonito, e não é pouco!
O ser humano é pouco tolerante às desigualdade, a não ser que ele veja alguma lógica ou alguma justiça nisso.
E como ver lógica e justiça na desigualdade? Lembra do nascimento do patriarcado, quando as pessoas começaram a ter propriedades e a guerrear para protegê-las ou ampliá-las? Pois é, nessa fase, a ficção, ou o storytelling foi fundamental. Por que você tem terras e eu não? Veja bem, eu sou rei, príncipe, presidente ou herdei do meu avô; você não. Eu sou escolhido por Deus para ter essas benesses. Eu, inclusive, sou o próprio representante de Deus (ou de alguns deuses, pois o comportamento independe de religião). Pense nas famílias reais e seus privilégios. Faz sentido? Só na ficção mesmo…
Mas então quer dizer que todo mundo acredita nessas historinhas e tudo bem? Não é tão simples. A cultura (e a propaganda, no seu sentido mais conceitual) é massiva. Quem está no poder, quer que as coisas continuem exatamente como estão. É perigoso discordar; quem coloca a desigualdade na mesa e questiona, geralmente sofre algum tipo de retaliação.
A gente é treinado a vida toda para acreditar em várias ficções, como já explica Youval Harari: o conceito de país, de dinheiro, de empresa, de leis, tudo foi inventado por nós, para que fosse possível colaborar em larga escala, não apenas em grupos menores. A ficção em si não é ruim. Mas ela também é muito útil para sustentar a desigualdade. E também para justificar os piores atos do ser humano.
ONDE O ILUMINISMO ERROU
Esse livro é muito, mas muito bem fundamentado. O autor foi até o iluminismo para tentar descobrir as causas dessa dissonância entre a natureza do ser humano e a nossa percepção.
A revolução filosófica chamada “O Iluminismo” começou no século XVII e foi o que podemos chamar de a fundação do mundo moderno. Lembra que lá atrás o Bregman dizia que, de toda a história da humanidade, só nos últimos 200 anos é que conseguimos reduzir a desigualdade, a miséria e aumentar a expectativa de vida? Pois, não foi coincidência. Ele reconhece que essa melhora tem relação direta com esse momento histórico.
O filósofo David Hume resumiu sua visão do iluminismo como “cada homem deveria ser considerado um patife que não tem outro objetivo, em todas as suas ações, além de seu próprio benefício”. Pesado, né?
Pois os iluministas eram team Hobbes; partiam do princípio de que os homens eram criaturas ruins, mas que, com regras, principalmente baseadas na razão, poderiam ser produtivos para a sociedade.
Observe: a salvação estava no pensamento racional; não na empatia, não na emoção, não na fé. Na razão.
Tem uma discussão muito interessante a esse respeito, mas vou tentar resumir aqui, para não me alongar. Lembra do conceito da profecia auto-realizável (que aqui o autor chama de Efeito Pigmaleão, por causa do escultor que trabalhou tão arduamente numa escultura que ela criou vida e virou humana)?
Então, se toda a economia, a democracia, as leis, a política, enfim, todo o fundamento da sociedade moderna parte do princípio e assume que todo ser humano é um canalha egoísta, o que podemos esperar? Se a gente parte do princípio que ninguém presta, será que não estamos dando um empurrãozinho para o mundo realmente se comportar assim? Não seria esse um efeito Nocebo?
O Iluminismo trouxe progresso, saúde, educação e muitas coisas boas. Mas também foi nesse período em que aconteceu o holocausto, uma das maiores barbaridades da história da humanidade. E institucionalizou o racismo (pensadores fizeram estudos “científicos”para mostrar que a raça negra tinha capacidade cognitiva inferior); trouxe o capitalismo selvagem, que coloca pessoas à morte na calçada de um hospital porque elas não conseguem mais pagar a conta e destrói ecossistemas inteiros (incluindo vidas humanas) em nome do lucro.
EXEMPLOS
O autor reflete se poderíamos fazer diferente na próxima fase da história da humanidade, quem sabe partindo do princípio que o ser humano é bom por natureza.
Se a gente estudar o efeito manada, onde a gente segue a maioria por confiar que esse povo sabe onde está indo, principalmente se o povo em questão for composto de pessoas próximas a nós, veremos que, assim como o ódio, a confiança também é contagiosa.
Nos capítulos finais Bregman mostra exemplos que deram certo quando se parte do princípio que se pode confiar nas pessoas: empresas que não controlam cada passo dos seus colaboradores; escolas que não tratam crianças como imbecis, exemplos de participação da população na votação das prioridades (orçamento participativo, citando, inclusive, Porto Alegre como modelo) e penitenciárias onde os presos têm a chave da cadeia e acesso a facas e tesouras (isso eu vi pessoalmente nas várias visitas que fiz nas APACs de Minas Gerais; você pode saber mais detalhes aqui).
AS 10 REGRAS
No epílogo, Bregman nos presenteia com 10 regras que ele diz que podem ser úteis para a gente repensar a humanidade a partir de uma perspectiva mais positiva (e realista, segundo ele).
- Na dúvida, assuma o melhor. Nessa eu concordo com ele; sempre confio nas pessoas e pouquíssimas vezes na vida, me dei mal por causa disso.
- Pense em cenários ganha-ganha.
- Pergunte mais. Essa regra é mesmo de ouro; assim a gente tira menos conclusões precipitadas.
- Menos empatia, mais compaixão. Lá pelo meio do livro, Bregman explica que existe um limite para a nossa empatia (senão a gente não dá conta) e ela geralmente está mais disponível para pessoas próximas a nós. Mas a compaixão não tem limite nenhum. Compadecer-se com o sofrimento do próximo e fazer algo para ajudar. É a diferença entre se sentir no lugar do outro (às vezes faz mal mesmo) e entender seu sofrimento para tentar diminui-lo.
- Tente entender o outro, mesmo se você não sabe de onde ele vem (para isso, o melhor é usar a razão e não se deixar levar pelos preconceitos).
- Ame a si mesmo como os outros amam a si mesmos.
- Evite notícias.
- Não soque nazistas. Aqui ele diz que ser extremista partindo para a violência é tudo o que eles querem; melhor usar a inteligência. Ele conta o caso em que os neo nazistas faziam fila para homenagear um deputado do regime do bigodinho num cemitério, numa pequena cidade alemã. As pessoas ficaram revoltadas, claro, e socar a cara deles não resolveria nada. Então alguém teve uma ideia ótima: a cada 10 pessoas na fila, a cidade doaria €10 para organizações que acolhiam pessoas que queriam sair de organizações de extrema-direita. O número de pessoas buscando a organização aumentou 300% na semana seguinte.
- Saia do armário; não se envergonhe de ser bom. Inspire outros a fazer o mesmo em vez de esconder as coisas boas que você faz.
- Seja realista. No modo positivo, acreditando na essência boa das pessoas.
CONCLUSÕES
Olha, achei o livro bem inspirador. O autor estudou muito e tem argumentos irrefutáveis para mostrar que a natureza humana realmente não é esse horror que a gente imagina.
Eu concordo com ele quando diz que a maioria das pessoas é boa por natureza. Mas é que a meia dúzia de estrupícios faz um estrago enorme, e, como o próprio autor diz, gera muito mais notícias.
Eu já falei várias vezes que não tenho muita fé na humanidade, mas vou reconsiderar um pouco. Quem sabe ainda tem uma esperança de que vai dar certo, né? Os bons precisam se unir, agora mais do que nunca.
Recomendo fortemente que você leia esse livro; vai lhe fazer bem — eu prometo. Tem em português na Amazon do Brasil; é só clicar aqui.
1 Response