Sete lições e meia sobre o cérebro

Mais um livro sobre neurociência para a coleção; dessa vez é o “Seven and a half lessons about the brain”, da neurocientista Lisa Feldman Barret (você pode ver outros aqui). 

Por causa de todos os anteriores, esse não apresentou nenhuma novidade incrível. Mesmo assim, foi um prazer enorme lê-lo, inclusive pela maneira como as informações estão organizadas e pelo exemplos. Lisa deve ser uma excelente professora, a julgar pela clareza e didática do seu texto.

Mas vamos ao que interessa: as tais lições.

A MEIA LIÇÃO

Barret começa pela meia lição, que, apesar de não ser uma surpresa, nunca tinha visto colocado dessa maneira. A meia lição é: nosso cérebro não foi feito para pensar.

Isso mesmo. Lisa vai apresentando toda a história da evolução neuronal, desde os primeiros seres vivos, há 500 milhões de anos, até os dias de hoje (mas de maneira bem sucinta).

A questão é que todo o nosso cérebro trabalha incessantemente, desde o nascimento até o último suspiro, administrando e gerenciando os recursos para nos manter vivos. Ele faz de tudo para poupar energia e otimizar os recursos; o objetivo é sempre o mesmo: prover condições para que o corpo continue a exercer as funções vitais da melhor maneira possível.

Esse sistema complexo supervisiona 600 músculos, equilibra dezenas de hormônios diferentes, bombeia sangue continuamente, regula a energia de bilhões de células cerebrais, digere comida, excreta os resíduos e luta contra doenças. Tudo ao mesmo tempo, sem parar nunca.

Resumindo, a principal função do cérebro não é pensar, mas manter o corpo vivo e funcionando.

Inclusive, já tinha lido em outro lugar (não me lembro o autor) que o cérebro não foi feito para o sucesso, que é uma posição de destaque, pois se colocar em evidência aumenta em muito os riscos. E o melhor para a sobrevivência é a discrição.

LIÇÃO 1: NÓS TEMOS APENAS UM CÉREBRO (E NÃO TRÊS)

Tudo começa com Platão, que falava sobre a eterna batalha entre as três forças que tentavam dominar nosso comportamento: a primeira seria o instinto básico de sobrevivência; a segunda seria a emoção e a terceira seria a razão

Influenciados pela filosofia, os primeiros neurocientistas acreditavam que o cérebro possuía de fato três camadas: uma para a sobrevivência, outra para sentir e a terceira para pensar. Esse arranjo é conhecido como cérebro trino, onde a camada mais interna, de sobrevivência, é chamada de cérebro reptiliano, a camada responsável pelas emoções seria o cérebro límbico e a camada mais externa, mais evoluída e responsável pela razão e pelo pensamento, seria o córtex cerebral, ou neocórtex.  Uma parte do neocórtex, chamado prefrontal, faria a regulagem entre eles.

Pois esse foi um dos erros mais populares e bem-sucedidos em termos de divulgação da história da ciência. Até hoje a gente vê planos de marketing, sistemas de gestão e um monte de livros que usam esse sistema como base. Muitos escritores e divulgadores científicos, como Carl Sagan, contribuíram para a popularização desse mito.

O erro só foi descoberto nos anos 1990, quando técnicas mais avançadas permitiram obter evidências de que o cérebro humano não funciona assim e não foi construído adicionando-se camadas, como se fossem sedimentos de uma rocha. Inclusive, hoje se sabe que anatomicamente o nosso cérebro tem muitas estruturas em comuns com outros mamíferos.

E toda aquela conversa sobre nosso cérebro ser grande? Bem, toda a nossa capacidade de raciocínio lógico não tem a ver com o tamanho dele. Isso acontece porque cada espécie tem habilidades específicas e seu corpo e cérebro são desenvolvidos para essa função. Por exemplo: a gente não pode voar (como os pássaros) e nem carregar 50 vezes o nosso peso (como as formigas); também não podemos regenerar partes perdidas (como as lagartixas). Mesmo as bactérias mais simples têm talentos específicos que não temos, como sobreviver a ambientes especialmente hostis.

Então, nosso cérebro não é necessariamente mais desenvolvido do que o dos outros animais. Apenas é desenvolvido de um jeito diferente, para sobreviver e reproduzir em ambientes específicos. 

E a separação entre razão e emoção? Lisa explica que as emoções são supostamente vistas como irracionais, mas não são. Se a função principal do cérebro é manter o corpo vivo, as emoções são instintos que preparam o corpo para as diferentes situações. Então, o nervoso, o choro, o medo, nada mais são do que reações perfeitamente “racionais” do ponto de vista da sobrevivência. Não há uma separação entre as duas coisas.

Com base nisso, Barret propõe uma definição mais realista do que seria ser racional: ser responsável por suas ações. Nada mais que isso.

Não sei para você, mas para mim faz todo o sentido.

LIÇÃO 2: SEU CÉREBRO É UMA REDE

Aristóteles pensava no cérebro como uma câmera de resfriamento para o coração, uma espécie de radiador. Os filósofos da Idade Média acreditavam que a alma se escondia entre as cavidades do órgão. No século XIX, a ideia mais popular era ver o cérebro como um Lego, onde cada peça tinha uma função específica. Tem também a ideia dos dois lados do cérebro: um sendo o criativo e o outro, racional. E ainda os dois sistemas, sendo um lento e um rápido. 

Todas essas metáforas são apenas isso: metáforas. Não correspondem à realidade da estrutura cerebral. 

Na verdade, o cérebro é uma rede gigante, com 128 bilhões de neurônios conectados para funcionar 24 horas por dia como uma unidade passiva e flexível. 

Lisa explica que para melhorar a eficiência existem hubs que conectam blocos de informações que seguem um certo padrão para evitar redundâncias. Fala também da neuroplasticidade que é a capacidade que a rede tem de redesenhar os caminhos e mudar fisicamente sua estrutura se necessário, além de conseguir chegar aos mesmos resultados usando rotas diferentes. 

Barret explica que essa rede é considerada complexa justamente por sua extraordinária capacidade de reorganização, mas não somos o único animal com um cérebro complexo: polvos e alguns pássaros também contam com essa estrutura.. Sempre lembrando que o ser humano não é o ápice da evolução; apenas temos um cérebro desenvolvido para nos adaptarmos ao ambiente em que vivemos. 

LIÇÃO 3: PEQUENOS CÉREBROS CONECTAM-SE AO MUNDO

Nesse capítulo, Lisa fala sobre como o cérebro humano demora para ter suas conexões completadas (cerca de 25 anos!) e que não se pode definir com clareza quais características humanas são inatas e quais são resultado do ambiente. Mas enfatiza como é importante, para o desenvolvimento do cérebro, a estimulação de uma criança. 

Enquanto as principais partes da gigantesca rede estão sendo construídas, as pessoas responsáveis pelo cuidado são muito importantes. Muitas conexões são geradas durante o crescimento e o que não é usado é simplesmente eliminado. 

Ela relata o conhecido caso do ditador romeno Nicolae Ceaseco, que decidiu abolir todos os métodos anticoncepcionais e o aborto com o objetivo de aumentar a população. Com tantas gravidezes indesejadas, muitas crianças foram parar em abrigos com disciplina quase militar. Elas eram apenas alimentadas e limpas. Nenhum estímulo ou interação social. Eram ignoradas e tratadas como objetos. O resultado foi uma geração inteira de pessoas com dificuldades de aprendizado, de comunicação, raciocínio e até vulnerabilidades físicas. Estudos mostram que crianças que crescem em ambientes miseráveis, sem comida e atenção suficientes, também têm o desenvolvimento do cérebro comprometido.

LIÇÃO 4: SEU CÉREBRO PREDIZ (QUASE) TUDO O QUE VOCÊ FAZ 

Aqui, Lisa explica que nós não vemos o mundo como uma fotografia ou um vídeo. A construção do cenário no nosso cérebro é tão fluida e convincente que parece muito acurada, mas na verdade, não é. 

O cérebro pega alguns sinais emitidos pela visão (na forma de sinais elétricos e químicos), procura algo parecido internamente com o mesmo padrão e completa as lacunas com memórias para agilizar o processamento (é mais rápido e eficiente trabalhar dessa forma — lembre-se que a prioridade é manter o corpo vivo otimizando os recursos).

Aí ele compara o que ele fez quando se deparou com a mesma situação em outras vezes e repete o comportamento. Então ele “prevê” o que vai acontecer baseado em experiências anteriores e se prepara para a situação. Às vezes, se a gente olha de novo e percebe que o que está vendo não combina com o que o cérebro está percebendo/interpretando, prevalece a versão interna. Quer um exemplo?

Você está morrendo de sede e toma um copo d’água. A sede cessa imediatamente, mas a água leva cerca de 20 minutos para chegar na corrente sanguínea. A sensação de saciedade é uma previsão do que vai acontecer, então o corpo já se adianta e constrói essa sensação.

Tudo o que a gente vê, ouve, cheira, experimenta e sente usando nossos sentidos é completamente construído dentro da sua cabeça, uma vez que o cérebro não tem acesso direto ao mundo externo. Tudo o que ele recebe são sinais elétricos e químicos. 

Por isso a gente erra bastante e às vezes não entende direito alguns comportamentos (tipo traumas, condicionamentos ou compulsões). É o corpo predizendo (erroneamente) o que vai acontecer e se preparando para isso baseado em experiências anteriores.

A notícia boa é que, por causa da neuroplasticidade essas referências podem ser mudadas; é a base do aprendizado.

LIÇÃO 5: SEU CÉREBRO TRABALHA SECRETAMENTE COM OUTROS CÉREBROS

Os humanos são uma espécie social; a gente simplesmente não consegue viver de maneira isolada. Dependemos de outros humanos inclusive para desenvolver nossos cérebros, como já vimos na lição 3.

Já vimos também que nosso cérebro consegue rearranjar suas conexões quando recebe estímulos do ambiente. Então, sabe aquela história de que somos o resultado das pessoas com quem mais convivemos? Faz sentido!

As ações das outras pessoas e nossas interações com elas nos afetam em muito. Um levantar de sobrancelhas pode nos deixar nervosos; um grito pode fazer nosso coração disparar. 

Como somos uma espécie social e completamente dependentes de outras pessoas nos primeiros anos, precisamos nos relacionar para nos desenvolver; não tem como um ser humano ser saudável vivendo isolado.

E tem mais: se a gente confia nos companheiros (de vida, de trabalho, etc), nosso cérebro fica menos ocupado tentando se defender e sobreviver e sobra mais tempo para ter ideias. Inclusive, acabamos nos sentindo confortáveis em bolhas (pessoas que pensam iguais a nós) porque o custo metabólico é menor (até porque não precisamos do esforço para aprender coisas novas).

Acaba que um ser humano regula o metabolismo do outro, seja com seus gestos, seu cheiro, sua aparência, seus sons. Mas somos a única espécie que afeta o cérebro dos outros usando palavras. Inclusive, essas ferramentas poderosíssimas que inventamos, conseguem fazer a gente criar universos inteiros dentro no nosso cérebro (pense num romance!).

E aqui tem uma informação muito interessante: se você é submetido a stress social num intervalo de duas horas antes de uma refeição, seu corpo vai alterar o metabolismo e adicionar 104 calorias por conta disso, independente do que você estiver comendo. Ou seja, stress engorda!  É seu corpo se preparando para o combate e armazenando recursos. 

Em resumo: a melhor coisa para o sistema nervoso de uma pessoa é um humano. Mas a pior coisa para o sistema nervoso de uma pessoa, também é um ser humano.

LIÇÃO 6: CÉREBROS SÃO MAIS QUE APENAS UMA MENTE

Quando as pessoas da Ilha de Bali, na Indonésia, ficam com muito medo, elas adormecem. É assim que o cérebro delas reage. Pode parecer estranho, pois a gente se acostuma com a imagem de pessoas de olhos arregalados, gritos de pavor e coisas assim para representar o estereótipo do medo; mas lá é diferente. 

No ocidente, por exemplo, a gente conversa sobre pensamentos e sentimentos. Mas em algumas culturas, isso não faz o menor sentido, pois pensar e sentir são sinônimos.

Alguns cérebros conseguem criar alucinações que conversam (hoje isso é considerado esquizofrenia, mas em outros tempos, pessoas assim chegaram a ser consideradas profetas ou santas).

Pense nas variações de percepção sentidas pelas pessoas com síndrome de Asperger, na ampla gama de orientações sexuais. Enfim; a questão é que há diferentes tipos de construções mentais que dependem tanto do indivíduo como da cultura (já vimos que o ser humano não se desenvolve de maneira isolada).

Do ponto de vista da evolução (cujo objetivo principal é sobreviver), essa variação é um pré-requisito. Se todos os cérebros fossem iguais, ficaríamos mais vulneráveis à extinção

É claro que a ideia de uma natureza humana única e uniforme é mais confortável, mas ela é tão simples quanto errada. O cérebro (a estrutura física) é comum, mas a mente (a maneira como os neurônios estão conectados) varia enormemente (felizmente).

LIÇÃO 7: NOSSOS CÉREBROS CRIAM REALIDADE

A maior parte do que a gente chama realidade é, na verdade, inventada: lidem com isso. Os conceitos de país, cidade, dinheiro, propriedade, governo, dados… é tudo combinado, as pessoas simplesmente compartilham essas ficções. Mas, na real, não existem de verdade; não são a realidade concreta. 

Nós vivemos num mundo de convenções sociais que só existem nas nossas mentes. Não há nada no mundo físico ou químico que determine que você saiu da Alemanha e agora está na França ou que estamos na segunda semana de julho. 

Coletivamente, nós designamos novas funções para as coisas físicas; combinamos que esse lago pertence a esse país, que esse pedaço de papel é dinheiro, que aquela pessoa é uma líder. 

Esse combinado coletivo altera nossos cérebros também. Por exemplo: a gente tende a achar mais gostoso um café que tem o rótulo ecofriendly do que um que não tem. Ou achar mais saboroso um vinho que custa mais caro. Mas essas percepções mostram suas fraquezas em testes cegos, quando não se consegue perceber socialmente a diferença entre o que está sendo provado.

Há uma frase de Lynda Barry, citada no livro, que resume bem a questão: “Nós não criamos um mundo de fantasia para escapar da realidade. Nós o criamos para tornar possível ficar nela”.

EPÍLOGO

Como eu disse, esse livro não tinha muitas novidades porque já havia lido algo parecido em outros do gênero. Mas isso não diminui em nada o valor dele: é didático, muito bem escrito e extremamente útil para a gente entender nossa estrutura mental e como a interagimos com o mundo e com os outros seres vivos, humanos ou não.

O livro já foi traduzido para o português, mas somente em Portugal, então a versão nesse idioma está um pouco salgada (veja aqui). Mas vou deixar o link para a obra em inglês também, que está bem mais em conta, para quem puder e preferir (clique aqui para ver).

Recomendo demais!

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