Como é que eu nunca tinha ouvido falar em Ray Kurzweil? O sujeito é um dos cérebros vivos mais extraordinários que se tem notícia. Essa mente brilhante teve a sorte de nascer em New York, numa família que incentivou muito seu desenvolvimento. Seu pai, um respeitado músico e maestro, e sua mãe, uma artista visual, eram judeus austríacos que foram para os EUA fugindo da guerra. Ray decidiu que queria ser inventor aos 5 anos; aos 14, ele escreveu um artigo explicando detalhadamente sua teoria sobre o funcionamento do neocortex. Seu tio, um engenheiro da Bell Labs, ensinou-lhe os princípios da computação, lá pelos idos de 1963, quando ele escreveu seu primeiro programa, aos 15 anos. Graduado em computação e literatura, o moço também é profundo conhecedor de música.
O sujeito produz tanto e em tantas áreas diferentes que nem consigo acompanhar: ele tem trabalhos em reconhecimento ótico de caracteres, nanotecnologia, robótica, reconhecimento de fala, inteligência artificial, neurociência, futurismo, transhumanismo, sintetizadores de instrumentos musicais, softwares para investimentos; ganhou prêmios diversos, escreveu vários livros, foi co-produtor de um documentário, e hoje trabalha em tempo integral para a Google.
Acabei conhecendo o trabalho dele por sugestão da Amazon, que, durante minhas pesquisas, indicou “How to Create a Mind: The Secret of Human Thought Revealed”. O algoritmo até que funciona bem direitinho; adorei o livro. Na verdade, é bem mais técnico do que eu esperava, mas ainda assim vale muito.
Ray cita, na parte inicial, o neurocientista Sebastian Seung, do MIT: “A identidade não está em nossos genes, mas nas conexões entre as células do nosso cérebro”.
A partir daí, Kurzweil desenvolve e apresenta sua teoria sobre o funcionamento do cérebro chamada Teoria de Reconhecimento de Padrões da Mente (PRTM: Pattern Recognition Theory of Mind) e explica, de uma maneira bem didática, as principais partes do cérebro e como ele funciona, com ênfase especial para o neocortex, onde a mágica acontece.
O neocortex ou “cérebro novo” é o que nos faz diferentes de todos os outros animais. Alguns mamíferos também têm essa estrutura, mas no ser humano é onde ela ocupa a maior parte do cérebro (cerca de 80% do peso). Enquanto o cerebelo (ou “cérebro velho”) cuida das questões de sobrevivência e dos instintos, o neocortex é a parte que aprende, que muda, que sente, que interpreta os sentidos, que se lembra e que toma decisões. Nos seres humanos, ao contrário dos outros animais, o neocortex foi se desenvolvendo continuamente até tomar quase todo o espaço (até por uma questão de necessidade; o aprendizado e a criatividade eram essenciais à nossa sobrevivência, como já explicou Harari em Homo Sapiens).
Mas como é que a gente interpreta as informações dos sentidos e toma decisões? Sabemos que não há imagens, vídeos ou sons armazenados no nosso cérebro, apenas sinais elétricos organizados em uma sequência de padrões. E a gente acessa, constrói e atualiza esse banco de padrões de maneira contínua. Os padrões que não são usados, vão sendo substituídos por outros mais recentes.
Mas o reconhecimento desses padrões e a nossa memória não faz a comparação das informações recebidas no momento com as que estão arquivadas de maneira sequencial e ordenada; o cérebro todo trabalha de uma vez só na identificação de forma simultânea. Por isso, temos tanta dificuldade, por exemplo, de dizer qual foi a quinta pessoa que encontramos hoje na rua ou de falar uma frase inteira com a sequência de letras invertida.
No livro, Ray explica com gráficos, desenhos, tabelas, fotos e esquemas a estrutura hierárquica que ele entende como sendo a que nosso cérebro usa para classificar e armazenar os padrões de informações, que são uma espécie de feixes de conexões neuronais que se reúnem em blocos como se fossem peças de Lego. A estrutura é relativamente complexa, dividida em seis camadas muito finas (as camadas mais externas interfaceiam com os nosso sentidos, como sensores externos).
Assim, nós conseguimos reconhecer padrões de uma imagem, por exemplo, mesmo quando somente uma das partes é percebida. Se essa porção está presente nos “módulos Lego” várias vezes e em muitos contextos diferentes, o cérebro preenche facilmente as partes que faltam. Outra observação interessante é que nossa percepção muda efetivamente de acordo com a nossa interpretação; isso quer dizer que estamos constantemente predizendo o futuro e adivinhando o que ainda vamos experimentar, baseados nos nossos padrões armazenados. Essa expectativa influencia de maneira muito forte o que estamos vivendo de fato. Isso faz com que a gente seja preconceituoso (esteja sempre em busca de padrões que confirmem nossos pontos de vista e nossas previsões para reduzir o esforço de processamento); se não se está consciente desses limites e tendências, o aprendizado não acontece e a gente acaba reproduzindo sempre mais o que já sabe.
O objetivo do trabalho incansável de Ray é ajudar a criar neocortex artificiais que possam não somente simular a mente humana, mas também superá-la em algumas habilidades. Ele explica em detalhes alguns experimentos com o Watson, a máquina inteligente da IBM, capaz de interpretar a linguagem natural em vários níveis de complexidade e realizar tarefas até há pouco tempo impensáveis para máquinas. Ele também fala de outros sistemas que já existem e funcionam bem como a Siri, assistente pessoal dos iPhones.
Então vem a discussão sobre o que é consciência, onde ela está (no cérebro?) e se os computadores podem adquiri-la. E toda a questão filosófica a partir daí. Outra preocupação para Ray é que tudo o que aprendemos durante toda a nossa vida está armazenado em um órgão frágil e perecível como o cérebro; não tem backup. A ideia dele é que se a gente conseguisse sintetizar o neocortex virtualmente, poderia ter nossos backups mentais na nuvem (um parte privada e outra que pudesse ser compartilhada, claro). Já pensou ter acesso ao cérebro do Einstein? Ou mesmo de Ray Kurzweil?
É claro que tem toda a complexidade, risco, as questões de privacidade, segurança e poder implícitos no conceito. Sem dizer que poderíamos trocar de corpo sem dificuldade, fazendo o upload do cérebro para a nuvem e depois fazendo download para outro (ou outros) corpo(s)?
Ray acredita que alcançaremos a singularidade, que é o nível de inteligência em que a máquina supera o ser humano, antes da metade desse século (2045).
Temos muitos problemas técnicos ainda para resolver até lá. Mas também é bom a gente já ir se ocupando com as questões sociais, filosóficas e éticas. Melhor não esperar as máquinas ficarem inteligentes o suficiente para resolvê-las por nós, não é?
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