Rola um ditado aqui no qual se diz que “Berlim não é Alemanha”. Não é mesmo. Em Berlim as coisas são bem diferentes do resto da pátria de Goethe.
Enquanto o país é conhecido pela disciplina, organização e respeito quase cego às regras estabelecidas, aqui o povo é mais relaxado. Diria que Berlim é tipo a Bahia da Alemanha: uma mistura de culturas de pessoas descontraídas que seguem uma filosofia voltada ao bem estar e à qualidade de vida. Acaba sendo um celeiro de artistas de todas as áreas e um caldeirão cultural que está sempre fervendo. O efeito colateral disso é que as coisas não funcionam tão perfeitamente como no resto do país e o atendimento ao cliente… bem, não vou comentar…rsrsr
Berlim também é conhecida por ser pobre (pelos padrões alemães, que fique claro), pois não tem grandes indústrias, ao contrário de Munique, que, continuando a analogia, seria como São Paulo (rica e culta também, mas de uma outra maneira). Tanto que o lema de Berlim é “Pobre, porém sexy” (como não amar?).
Bom, mas como é que a sede do governo prussiano, conhecido pelo militarismo e disciplina ficou assim? Por que Berlim é tão diferente da Alemanha?
Primeiro, vamos ao contexto histórico. Depois da segunda guerra mundial, a Alemanha perdeu e foi dividida entre os aliados. A Rússia ficou com quase metade (e fundou a União Soviética, que congregava a maior parte dos países do Leste Europeu) e a Inglaterra, França e EUA ficaram com o restante.
Berlim era uma cidade muito importante para pertencer somente a um aliado. Então, mesmo ficando bem no meio da antiga Alemanha Oriental (ou DDR— Deutsche Demokratische Republik), acabou dividida também; uma parte (quase metade) para a Rússia e a outra parte para os demais aliados.
Agora imagine a tensão do povo que vivia na cidade na época da divisão (a fuga do lado oriental para a parte ocidental da cidade era tão grande que tiveram que construir o famoso muro). A qualquer momento a coisa podia explodir; uma ilha capitalista no meio de um país comunista medindo poder o tempo todo. Teve um ano (entre 1948 e 1949) que os russos bloquearam todas as estradas que davam acesso ao lado ocidental, de maneira que absolutamente tudo tinha que chegar de avião: de comida a combustível; de remédios a material de construção. Eram quase 600 voos cargueiros por dia para abastecer a cidade! Olha aí embaixo como era o mapa naquela época.
Claro fica que ninguém queria morar nessa arapuca, né? Então o governo ocidental teve que se virar para incentivar as pessoas a viver na cidade e fez mais ou menos como o governo brasileiro para povoar Brasília: aumentou salários para quem se mudasse para lá, deu incentivos e prêmios, algumas regalias, enfim. Mas o que fez definitivamente diferença foi a isenção do serviço militar.
Naquela época, todo cidadão alemão tinha que cumprir dois anos de serviço militar obrigatório*. Depois de perder duas guerras, muita gente não se animava com a perspectiva. E adivinhe qual perfil? Artistas, intelectuais, pensadores, atores, escritores, músicos, criativos, enfim, toda essa gente que é um pouco avessa ao conceito de guerra e, principalmente, obediência.
Então, a maior parte dos alemães que tinham um perfil, digamos assim, mais alternativo, mudou-se para a cidade para fugir do quartel. Faz sentido, né?
A parte histórica eu já conhecia, mas essa relação entre dispensa do serviço militar e o perfil pouco “alemão” (no sentido mais estereotipado) de Berlim foi me apresentada numa festa de verão que fui no sábado, na casa de amigos. A mulher, uma berlinense da gema, do alto dos seus sessenta e poucos anos, viu a transformação da cidade in loco e me contou a história.
Adorei. Você não?
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* Segundo a Rosana Conte, que mora há mais de uma década na cidade e é casada com um alemão da antiga DDR, o serviço militar aqui na Alemanha (Militärdienst ou Wehrdienst) deixou de ser obrigatório em meados de 2011, quando o Exército se tornou profissional (quem entra é para seguir carreira). A opção para quem não quer se tornar militar é prestar um serviço social chamado Zivildienst (cuidar de idosos, pessoas deficientes e por aí vai); esta alternativa de prestação de serviços à comunidade já existe desde 1961, e foi criada para os jovens que por motivos pessoais não queriam vínculos com o serviço militar (não pegar em armas e matar por motivos religiosos, por exemplo).
Ênio Padilha
Lígia, querida.
A frequência ao seu site é um prazer constante. Só tem coisa boa.
Esta explicação sobre Berlim é muito provavel que não seja encontrada em nenhuma outra publicação brasileira. Você é show!
ligiafascioni
Ahahahaha… também não é tanto assim, mas fico muito feliz que aprecie. Essa explicação deve estar em outros lugares e é bem simplista (afinal, eu a ouvi em uma festa); deve haver outros ingredientes complexos que só os sociólogos entendem… 🙂
Beijos e saudades!
Paulo Tadeu Leite Arantes
Berlin, do fim da segunda guerra até a queda do muro, foi, de fato, uma cidade muito especial. Era como se fosse uma ilha capitalista encravada em território comunista. A unica cidade do mundo que não tinha periferia, afinal o muro cercava tudo e não sobrava nada além dele que não fosse “território soviético”. Moramos lá, na Ringslebenstrasse em Rudow, a poucos passos do muro, por quatro meses, de outubro de 1983 a fevereiro de 1984, auge da guerra fria. O que mais nos chamou atenção neste período foi exatamente a abundancia de ótimos programas culturais, ofertados a todos quase de graça, sendo muitos deles totalmente free. Lá pude assistir o ballet de Stuttgart, com a brasileira Márcia Haydée como primeira bailarina; vários concertos na Philarmonie, regidos pelo monstro da batuta, Von Karajan; duas exposições do Picasso na Nationale Galerie, um festival de cinema; quase todas as óperas famosas (a Deutsche Oper oferecia um espetáculo de ópera por dia), museus e um detalhe que só mesmo em Berlin: as vitrines da KaDeWe, uma obra de arte que trocava toda segunda feira. Enfim a atividade cultural e artística desta cidade fervilhava e, confesso, nunca mais tive a oportunidade de ver tanta coisa em tão pouco tempo, como nestes gloriosos quatro meses de Berlin. Sehnsucht nach Berlin!!!
ligiafascioni
Que bacana, Paulo!
Ainda bem que você comentou aqui também, estava pensando em pedir para você compartilhar informações tão ricas e de primeira mão. Deve ter sido muito emocionante. Nessa época eu nem sonhava que um dia iria morar aqui (e amar!)…
Obrigada 🙂
Frank Maia
Ligia, eu sabia, eu sabia o/ . Li num livro de um brasileiro. “O verde violentou o muro” do Ignácio de Loyola Brandão. Acho q vc ia gostar de lê-lo aí em Berlim. Bjk
ligiafascioni
Nossa, Frank! Eu era fã do Ignácio de Loyola Brandão e lembro-me bem desse livro! Acho que foi o único dele que não li e nem desconfiava que o muro do título era esse aqui. Será que tem em alemão? Vou pesquisar (não leio mais português…rsrsrs).
Beijos e obrigadíssima pela dica 🙂