Outro dia, enquanto caminhava pela rua com a queridíssima Rosana Hermann, ela comentou comigo que aqui em Berlin até os mendigos eram chiques, pois ela tinha visto um recolhendo as garrafas do lixo a bordo de uma bicicleta bem bacana.
Hoje vi outro e me dei conta. Aquela pessoa não é mendiga. Ela apenas está precisando de dinheiro. Então, recolhe as garrafas nas lixeiras, leva até o supermercado, coloca nas máquinas de reciclagem e recebe um troco de volta. Problema (pelo menos parcialmente) resolvido.
É isso que as pessoas aqui fazem quando precisam de dinheiro, sem vergonha nenhuma (não é vergonha precisar de dinheiro; ou é?).
No Brasil, o cidadão se afunda em dívidas de cartões de crédito para manter as aparências e se sente humilhado em fazer coisas que não são consideradas “dignas” para alguém de sua “classe”.
E não estou falando hipoteticamente não; estou incluindo eu e você. Pelo menos, não me imagino catando garrafas nas lixeiras sem me sentir constrangida. E isso deveria ser encarado como uma coisa absolutamente normal. Steve Jobs, no seu famoso discurso em Stanford, disse que viveu meses dessa maneira quando abandonou a universidade. No Brasil, as pessoas que fazem isso são invisíveis, quase como se pertencessem a uma subcategoria de gente. A cena nos constrange tanto que nem sequer olhamos para essa gente, como se eles estivessem fazendo algo vergonhoso. Não estão.
Depois, na aula, estava comentando com o professor que no Brasil não temos tradição de comprar objetos usados. Ele perguntou: “Como assim? E o que vocês fazem com as coisas antigas?”. Eu disse que a gente jogava fora e comprava outras novas. Entendi a cara que ele fez e confesso que fiquei com vergonha. Principalmente porque é verdade…
Aqui, qualquer coisa que tenha uma história, mesmo que não seja tão antigo, conta mais. Você pode comprar xícaras e pires comuns que perteceram a uma senhorinha da outra quadra num mercado de pulgas, por exemplo, pelo mesmo preço ou até um pouco mais caro do que pagaria numa IKEA. Mas o povo curte mais. Acontece a mesma coisa com roupas e sapatos. Não se trata de antiguidades, mas de coisas que não tem em qualquer esquina para vender; na HM você compra uma camiseta a preço de banana feita na China seguindo as tendências, mas o pessoal prefere uma usada pelo mesmo preço porque não tem outras 500 iguais no cabide. É uma abordagem totalmente diferente, menos consumista, mais consciente. Esses dias teve até uma manifestação onde as pessoas levavam camisetas usadas na Alexander Platz para trocar; pena que eu tinha aula, senão teria participado.
Vejo isso e fico pensando no quanto a gente no Brasil ainda é pobre. E pobre daquele jeito que a Coco Chanel falava: “tão pobre, mas tão pobre, que só tem dinheiro e mais nada“. Temos muito, mas muito dinheiro; muitas riquezas, de todos os tipos imagináveis.
Mas é só isso. Como não temos cultura e nem educação, não sabemos gastar essa fortuna toda. Desperdiçamos tudo, de água a espaço urbano, de comida a material de construção, de combustível a eletricidade. As pessoas chegam a sentir vergonha até de levar para casa as sobras de um jantar caríssimo no restaurante (as que fazem, dizem que são para o cachorro ou para o porteiro).
A displicência é tão grave que não nos preocupamos nem sequer como o dinheiro fruto do nosso suor, aqueles dos impostos, que é desviado escandalosamente todos os dias e ninguém liga. No final, vira piada.
Pobres de nós, crianças ricas, mimadas e sem nenhuma noção do perigo…
Ecil
Gostei! 😉
Clotilde♥Fascioni
Parabéns! Muito boa observação. Bjs
Fatima
Ligia este texto é um dos melhores que li acerca deste assunto. É muito triste a gente ter que admitir que é ignorante. Felizmente convivo com algumas pessoas que tem “a noção do perigo”, mas juro que não entendo porque a gente tem esta cultura do descarte. E o que é pior: descartamos no primeiro terreno vazio da esquina. Coisa mais triste, mas acho que a própria indústria, os meios midiáticos e o modelo econômico empurram as pessoas para esta cultura suicida em países como o nosso, que nunca viveram uma guerra. Para mudar o rumo só trabalhando as pessoas desde o jardim de infância. Por outro lado, hoje na faculdade de moda da UDESC o discurso já é bem dentro desta visão sábia. Falando outro dia com minha mana ela dizia o que é moda, o que é ser chique e tudo isto passa por uma visão inteligente da vida, de conceitos baseados em novos paradigmas, recursos, etc. E aqui o seu texto tem tudo a ver. Aliás, me deixa te contar algo muito lindo: hoje encontrei a responsável pelo brechó aqui da festa do padroeiro (Santo Antônio), e ela está trazendo muita coisa bonita que foi doada para a festa. Ela mora em Florianópolis mas é lagunense. Isto mostra que algo está mudando. Parabéns pelo seu texto. Vou encaminhar ao grupo de escritores daqui. E que bom vc estar vivenciando isto tudo. Abraço. Fatima/Laguna
ligiafascioni
Oi, lindona!
Pois é, ao mesmo tempo que fico triste, penso que nem tudo está perdido. Há iniciativas tímidas para mudar esse cenário, mas ainda falta muito.
Bom saber que tem gente se mexendo!!
Beijocas 🙂
Bruno
Beleza de texto. Viajar para lugares mais ricos nos dão essa consciencia. Para lugares mais pobres a conclusao seria a mesma. E nesse caso nem precisaríamos sair do Brasil. A pobreza mais cruel é mesmo aquela relegada aos pobres de espírito.
ligiafascioni
Verdade, Bruno.
Abraços
Nereu Pasquini Neto
Me inspirou a repensar muito minha vida. Esse texto promoveu uma mudança em mim.
Da mesma forma que depois de conversarmos por e-mail, há algum tempo, ingressei na faculdade e revi meus conceitos.
Obrigado Ligia!
ligiafascioni
Nossa, que bacana, Nereu! Bom saber que de alguma maneira estou fazendo diferença com meu trabalho.
Abraços e muito sucesso!!
Hans Thomas Meinecke
Ligia , jetzt hast Du langsam angefangen Deutschland auch anders zu sehen.Du versteht es wirklich.. Es freut mich dass Du wirklich Fortschritte machst. Ich hoffe Du siehst das nicht als Hochnäsigkeit meinerseits.Ich freue mich zu sehen das wir es gleich sehen..Parabéns Priminha.. Abraço.
ligiafascioni
Lieber Cousin Thomas, es ist leichter die Kultur und die Gewohnheiten zu verstehen als die Deutsche Sprache zu lernen….rsrsrsrs
Grüße 🙂
Vanessa Meireles
Lígia fantástico seu texto, leio o seu blog diariamente já faz uns 3 anos, seus textos me fazem refletir sobre várias coisas, e até são como terapia para mim, quando estou estressada para e leio o seu blog, ele muda meu foco, me faz olhar para o lado, e agora com vc na Alemanha a viagem cultural está sendo maravilhora, para pessoas como eu que não conhecem a europa tem sido um deleite.
Meu muuuuuuuuuuito obrigada! Seu blog é uma viagem cultural maravilhosa. Faz tempo que queria comentar, mas hoje não resisti.
ligiafascioni
Oi, Vanessa!
Que bom que você está gostando, a ideia é essa mesma! Adoro quando as pessoas (como você) conseguem pegar o espírito da coisa e viajar junto!
Beijocas e volte sempre!
Sal Kukulka
Estava olhando no endereço da Adri Cadore Gusmão (my ex boss) rs…. e de repente me deparei com o teu texto. Parabéns por falares da nossa IGNORÂNCIA e POBREZA (e não adianta tapar o sol com a peneira). Sejamos honestos conosco mesmos.
Irresistível!!! Tenho falado sobre isso em várias ocasiões onde tenho oportunidade. Morei fora do país e tive a oportunidade de verificar como eles vivem lá fora. Levei um baita de um susto ao verificar o que REALMENTE PENSAM DE NÓS!!! Me choquei!!! Tivestes situações como estas também??? (EUA, Europa ou Ásia?)
Penso, sinceramente, que TODOS NÓS BRASILEIROS, deveríamos visitar países estrangeiros e verificar com nossos próprios olhos o que ocorre fora do nosso umbigo Brasil. Depois voltarmos e consertarmos o que precisa ser consertado!!!
E daí sim, talvez tenhamos uma chance …. Não há que se falar nisso e deixar de lado a EDUCAÇÃO que pensamos ter no nosso país e que não chega NO DEDÃO DO PÉ deles.
Ahhh … outra coisa, o preço dos livros no Brasil é ALTÍSSIMO enquanto nos Estados Unidos, Europa e Ásia ele é baratíssimo. E para que necessitamos de livros brancos??? Faça-se livros com papéis mais baratos e que possam chegar às mãos da maioria dos brasileiros. E leia-se clássicos e leia-se de tudo!!!
Já prestastes atenção às traduções que fazem dos filmes infantis estrangeiros para o português do Brasil??? As traduções ao deus-dará deveriam ser proibidas. Melhor assistí-los na língua de origem.
Teria outras coisas para falar Lígia como dizemos em SC (máaaaaaaaaa váaaaaaaaaaaa) vai que escrevo … não é???? Hoje em dia no Brasil VELAR nossas mazelas é fashion. Me engana que eu gosto!!! E assim caminhamos nós brasileiros!!!
Ahhhh outra coisa, já notastes o número de palavrões que se fala??? Pessoalmente, na mídia e até entre as crianças???
Já notastes também a diferença das nossas crianças brasileiras para as crianças americanas, européias e asiáticas??? Aqui parecem adultos em corpo de criança enquanto o oposto também ocorre com relação ao adulto.
Há tanta coisa a ser feita ….. mas primeiramente EDUCAÇÃO, EDUCAÇÃO e MAIS EDUCAÇÃO.
Foi um prazer vir até o teu blog e ter a oportunidade de ler algo inteligente e pontual. Tenhas um excelente final de semana. Abraços. Sal.
ligiafascioni
Oi, Sal!
Concordo com você, mas penso que a gente tem que tomar cuidado para não achar que aqui é tudo ruim e que os outros são melhores em tudo. As crianças americanas são bem mal educadas (além de extremamente consumistas, como os pais) e os europeus também não são perfeitos. Mas podemos sim, aprender muito replicando as melhores práticas, principalmente no que tange à educação.
Concordo com você: sem educação, não vejo saída não. Estou tentando fazer a minha parte, tentando inspirar pessoas a estudarem mais e aprenderem coisas diferentes. Nossos valores estão distorcidos, então é preciso que haja uma campanha gigante para que a educação e a cultura voltem a ser desejados e valorizados. Um blog só, alguns livros e palestras são bem pouco, mas tenho recebido feedbacks alentadores que me fazem acreditar que esse pode ser um caminho viável. Vamos juntas mudar o mundo?
Beijos 🙂