Como podemos ser menos canalhas?
Estou me controlando para não ler mais nada em português (meu pobre alemão suplica para que eu diminua o relacionamento com minha língua mãe e lhe dedique mais tempo), mas está difícil.
Da última vez que estive no Brasil, tive a sorte e o privilégio de assistir uma palestra do brilhante professor Clóvis de Barros. Feliz com essa aula tão inspiradora, não pude resistir quando, na volta, já no aeroporto, fui aliciada na livraria pelo “Somos todos canalhas: filosofia para uma sociedade em busca de valores”, cria dele com o também professor de filosofia Júlio Pompeu.
Como já dizia meu ídolo Oscar Wilde, “posso resistir a tudo, menos às tentações”. Então vamos lá…
O livro já começa com um formato interessante; inspirados em Platão, os dois professores dialogam sobre o conceito de valor. Um escreve um texto, outro complementa, o primeiro refuta, o segundo defende e assim vai. O objetivo não é nos fazer chegar a uma conclusão, mas, apresentadas as ideias de filósofos consagrados e os conceitos que eles tinham de valor, fazer-nos pensar para entender, afinal, qual é o nosso conceito pessoal de valor (que é subjetivo e diferente para cada pessoa).
Na primeira parte, os professores apresentam o início da ideia de valor: a importância ou exatidão de uma coisa em relação a uma referência. O grande desafio é encontrar essa tal referência como sendo o sinônimo de melhor (que também é um conceito relativo).
Eles começam apresentando o que os gregos pensavam a esse respeito: o valor de uma ação humana é resultado da comparação entre ela e a ideia de virtude, em que os principais parâmetros seriam a verdade, a beleza e o bem.
Eles falam também que os gregos acreditavam que uma coisa tinha valor, e, portanto, era justa (ou seja, ajustada às virtudes), quando cumpria sua função no cosmos. Para usar tal conceito, partia-se do princípio de que o cosmos era perfeito e que cada coisa que existia nele tinha uma função específica: cabia a cada coisa e a cada ser descobrir sua razão de existir e executá-la da melhor maneira possível. Um profissional excelente, sob esse ponto de vista, seria o equivalente a uma árvore que desabrocha a partir de uma semente e desenvolve todo o seu potencial.
Mas essa teoria também admite que há pessoas que nascem para ser mato e, então, todo o esforço para virar árvore contraria a natureza, veja só. Dessa forma, para os gregos, existiam seres humanos melhores e mais valorosos que outros. Essa medida era dada segundo a função que a natureza lhes atribuía concedendo-lhes talentos específicos.
E eis que chegamos à segunda parte, que fala de Cristo e dos filósofos modernos. Aí houve uma ruptura radical no conceito de valor, começando do princípio que todos os seres humanos teriam as mesmas possibilidades e potencialmente, o mesmo valor, mesmo que desigualmente desprovidos pela natureza de recursos e talentos.
Enquanto para os gregos, a superioridade viria da riqueza dos talentos naturais, para os cristãos, viria do emprego que se faz do livre arbítrio, ou seja, como cada um usa os recursos que a natureza lhe deu para agir de acordo com os ensinamentos do Criador.
O Júlio chama atenção para uma coisa interessante: convivemos hoje em dia com os dois critérios simultaneamente. Às pessoas que nos são próximas, julgamos o valor pelas suas atitudes. Àquelas que não conhecemos, usamos o critério mais genérico, a natureza (quando estigmatizamos grupos inteiros por suas características étnicas, por exemplo).
Bem, a discussão filosófica segue longe, cada vez mais interessante.
De tudo, o que mais me marcou foi a definição atualizada de ética. O gregos definiam esse termo como a vida boa e feliz, em conformidade com a natureza e a função que ela auferiu a cada coisa e a cada ser vivo.
Acontece que a teoria de valores do filósofo Stuart Mill, denominada consequencialista, diz que o valor da conduta humana não está na intenção de quem age, como acreditam os cristãos, mas na eventual felicidade que proporciona a todos por ela afetados.
Clóvis se baseia nela, de certa forma, para cunhar o conceito de ética adaptado aos dias de hoje: “ética é o emprego da inteligência coletiva para o aprimoramento da convivência”.
Antiética, portanto, é a pessoa que não pensa nos outros, que não tem capacidade de empatia, que prioriza seu bem-estar e vantagens pessoais em primeiro lugar. E, com isso, voltamos ao título do livro, “somos todos canalhas”, ou seja, todos temos momentos em que nos despimos de nossa capacidade de empatia e desprezamos a convivência, o coletivo. Em que pensamos mais no nosso conforto do que no impacto que os nossos hábitos causam ao planeta e aos outros seres humanos. Por isso, somos canalhas.
Ao reconhecer o fato depois da bela aula desses dois filósofos contemporâneos, fica a questão: se queremos uma convivência melhor (menos guerras, menos violência, menos poluição), como podemos trabalhar para ser pelo menos um pouco menos canalhas?
Temos que achar rápido essa resposta, o mundo está se desintegrando enquanto a gente discute…
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