Fui a Fortaleza na semana passada por conta de um trabalho e, como ia ficar poucos dias, tinha espaço sobrando na mala. Fiz um post no Facebook contando que ia aproveitar para levar duas bolsas cheias de coisas que sobraram da limpa que fiz no guarda-roupa para doar para mulheres em situação de rua. A ideia era incentivar outras pessoas a fazer o mesmo; confesso que não tinha pensado nisso. Só me inspirei quando vi um post parecido de alguém fazendo a sugestão.
Foi uma enxurrada de comentários (até inbox) elogiando a ação; que belo gesto, altruísta, generoso e um monte de coisas mais. Sei que a intenção foi boa e agradeço o carinho, mas vamos pensar: o que tem de altruísta em doar coisas que você não quer mais?
Penso que o fato do Brasil ser tão desigual acaba distorcendo um pouco a nossa percepção do mundo.
Tenho a sorte de morar num país com menos desigualdade, onde os objetos são distribuídos de maneira um pouco mais proporcional em relação às pessoas; aí essa percepção é um pouco diferente.
Quando a gente faz a faxina no guarda-roupa ou no porão, há várias maneiras de fazer as coisas circularem: mercados de pulgas, grupos de trocas e doação, grupos de vendas, enfim.
Uma das que mais gosto é o hábito de encher uma caixa com os objetos que não quer mais e colocar na calçada em frente ao prédio com os dizeres “zu verschenken” (para doação). As pessoas vão passando e examinando a caixa para levarem o que acharem interessante. Eu mesma escrevi esse texto no aeroporto enquanto esperava a conexão usando um casaco que achei na rua, numa dessas caixas.
Jamais passará pela cabeça de um alemão achar que colocar a caixa na calçada é um gesto de altruísmo ou generosidade. Jamais alguém que passa e examina o conteúdo da caixa se sente humilhado ou constrangido por pegar algo que gostou. Porque é assim que deve ser a ordem natural das coisas; os objetos precisam circular para maximizar sua vida útil.
No Brasil, onde a distribuição de objetos está concentrada na mão de uma minoria (na qual me incluo), a pessoa que doa O QUE NÃO QUER MAIS passa a ser considerada o mais nobre dos seres humanos.
Não tem alguma coisa errada nisso?
Altruísmo seria eu doar meu vestido predileto ou a blusa que acabei de comprar e estou esperando a ocasião para estreá-la. Ou doar algo que esteja usando no momento e fará falta (um casaco, um sapato). Mas uma coisa que não estou usando mais? Qual o esforço?
Esforço mesmo, para mim, foi na hora de entregar as bolsas, olhar nos olhos dessas mulheres que moram na rua e tentar disfarçar o constrangimento pelo fato de que eu, que tantos privilégios e oportunidades tive na vida, não ter feito praticamente nada para mudar a situação delas e da maioria esmagadora das pessoas que vive no país sem o mínimo de objetos necessários para ter uma vida digna.
Isso sim, foi difícil.
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