Torto arado

Já tinha ouvido falar em Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, em vários lugares. A obra ganhou prêmios e o autor, geógrafo do INCRA e doutor pela UFBA em estudos étnicos e africanos, tornou-se uma celebridade no mundo literário. É que ele conseguiu o feito de ter vendido mais de 100 mil exemplares em um livro de ficção; coisa raríssima em terras brasileiras.

Estava namorando de longe, mas na minha rápida visita ao Brasil, em outubro, só passei por livrarias de aeroportos. Lá só tinha auto-ajuda ensinando como ficar rico rápido e alguns livros técnicos traduzidos. Literatura brasileira, não achei (nem mesmo o último do Chico Buarque). 

Enfim. Foi quando participei do Brempex (Encontro das Brasileiras Empreendedoras no Exterior) em Hamburgo, no mês de novembro, e lá encontrei a Valeria Jansen, do Clube do Livro de Münster. A moça traz livros brasileiros para cá e, na mesa de exposição, encontrei essa joia. 

Na verdade, comprei para dar de presente para a Carla da Silva, minha amiga secreta que ama literatura brasileira (por isso só pude publicar essa resenha depois do Natal…rs). Eu quase nunca dou um livro de presente sem tê-lo lido antes — controle de qualidade, né, gente?

A obra é um soco no estômago necessário; mas dado com muita poesia, se é que isso é possível. É daquelas histórias que a gente lê e fica por dias pensando porque o mundo é assim tão injusto e cruel. E porque nós participamos disso, mesmo que de maneira passiva.

Bom, tudo começa com Bibiana narrando uma cena da infância, numa fazenda onde sua família morava. Ela e a irmã Belonísia, de 6 e 7 anos, curiosas como toda criança, descobriram uma faca afiadíssima numa mala escondida no quarto da avó. Colocaram a faca na boca porque crianças fazem isso; quando a mãe viu, Bibiana tinha cortado fora um pedaço da língua e Belonísia tinha feito um belo corte na sua. Bibiana ficou então muda pelo resto da vida e sua ligação com a irmã, que passou a ser sua voz para o mundo, ficou ainda mais estreita.

O tempo vai passando e vamos conhecendo melhor a história da família (e da faca). E o que mais choca é o realismo; poderia ser uma história de qualquer família que a gente conhece.

Bibiana e Belonísia são descendentes de pessoas escravizadas; mais tarde, seu primo Severo, rapaz curioso e inconformado, esclarece melhor as coisas. Logo depois da “abolição” da escravatura no Brasil, os senhores de engenho foram obrigados a “libertar” os escravos. Porém, precisavam de mão de obra para tocar as fazendas, mas não estavam dispostos a pagar pelo trabalho. 

A solução encontrada foi oferecer um pedaço de terra para as famílias construírem casas de barro que se desmanchavam com o tempo (não podia ser de alvenaria, já que tinha que ficar claro que não eram donos da propriedade) em troca de trabalharem de domingo a domingo no campo, sem direito a nenhum tipo de pagamento. 

Como não tinham dinheiro, o acordo é que poderiam ter hortas nos quintais e animais para comer. Só que justamente em épocas de estiagem, os donos da terra se sentiam à vontade para confiscar o produto das plantações caseiras. 

Ou seja, a escravidão continuava da mesma maneira. Eles tinham “liberdade” para ir embora. Mas ir para onde? Tinham que ir a pé para a cidade para vender o excedente da produção doméstica e ter uns trocados para roupas e utensílios. Sem escola, sem água encanada, sem eletricidade, sem saúde, sem transporte e sem salário, as perspectivas também não existiam. 

Aos imigrantes europeus, foi dado apoio e respeito; terras, ferramentas ou algum tipo, mesmo que pequeno, de ajuda. Mas os escravos continuaram como estavam: sem nada. Nem terra, nem ajuda, nem respeito. 

E as famílias agarravam-se à sua fé e religião para dar conta de tanto sofrimento; assim conseguiram ficar décadas sem reagir.

Poucos sabiam ler e escrever; as mulheres acostumaram-se a ser violentadas pelos maridos e a sofrer em silêncio. Nesse cenário, as histórias das duas irmãs se desenvolvem. Parte contada por Bibiana, parte contada por Belonísia, parte contada pelo pai delas, Zeca Chapéu Grande, e, no final, até uma Encantada, como eles chamavam os espíritos da religião que praticavam conta uma parte. 

Tem um quê de mágico, surreal e poético na narrativa, muito bem construída. Achei muito interessante porque os narradores são analfabetos, mas contam a história de maneira culta e com as palavras bem escolhidas, no que interpreto como um sinal de respeito pelos personagens. 

Coisa muito triste pensar quantas Bibianas, Belonísias, Severos, Zecas Chapeús Grandes e mais tantos personagens vivem por aí, até hoje. O Brasil foi construído sobre uma base escravagista que alguns ainda teimam em sustentar, o que penso ser a maior causa da desigualdade e do racismo que matam indiscriminadamente os descendentes dos escravizados, seja diretamente, pelas mãos da polícia, seja negando-lhes um futuro digno. 

Tanta riqueza, tanta fartura, e tão mal distribuída. Não é coincidência, não é porque “Deus quer”. É um projeto. Sempre foi.  

Belo, triste, mas necessário. Espero que a Carla goste. 

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Se quiser ouvir a resenha no podcast Minha Estante Colorida, clique aqui.

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