Perguntinha capciosa essa, heim? Vou dar uma pista, afinal, até alguns dias atrás, eu nem fazia ideia se isso era de comer ou de beber.
Vamos lá: iconoclasta, significa, literalmente, destruidor de ícones. A origem da palavra data de 725 d.C., quando Leo II, imperador de Constantinopla, destruiu o ícone dourado de Cristo instalado nos portões de seu palácio. O iconoclasta não respeita símbolos, ídolos, imagens religiosas ou qualquer tipo de convenção social ou tradição. Um iconoclasta entende que nada nem ninguém é digno de culto ou reverência.
Quem desenterrou isso lá das antigas e trouxe para o nosso mundinho contemporâneo foi o neurocientista Gregory Berns, com seu ótimo livro “O iconoclasta“.
Berns atualiza o conceito quando diz que iconoclasta é uma pessoa incomum que interpreta a realidade de maneira distinta e faz aquilo que o senso comum julga impossível de ser feito. Ou seja, iconoclastas são inovadores, aquela raça que muda o mundo e vira pelo avesso tudo o que a gente conhece. Nem sempre esse povo é fácil de lidar, mas são eles que fazem a civilização andar.
Os iconoclastas são pessoas diferentes da média e vêem o mundo de uma maneira diversa e original. Gregory Berns descobriu, inclusive, que o cérebro dessas pessoas é diferente em três aspectos principais: a percepção, a resposta ao medo e a inteligência social.
1. Percepção
Os iconoclastas percebem o mundo de um jeito que as outras pessoas não costumam sequer imaginar. A explicação para isso é que o cérebro tem um gasto fixo de energia e não pode dispender mais quando tem que executar uma tarefa mais complicada. Para resolver isso, nossa massa cinzenta tem alguns truques que a fazem ficar mais eficiente: um deles é rotular tudo o que lhe aparece pela frente, num esquema chamado categorização preditiva (um jeito científico de denominar preconceito).
A coisa funciona da seguinte maneira: para não ficar saturado de informações, o cérebro infere o que está vendo, ou seja, ele avista apenas uma parte da cena e logo murmura: “ah, isso aqui eu já conheço, é um cavalo marinho plantando bananeira“. Assim, nossos miolos escolhem algumas partes que acham mais interessantes e ignoram o resto. Isso economiza energia e funciona muito bem no dia-a-dia, mas destroi, sem dó nem piedade, toda nossa imaginação e capacidade criativa.
Então, uma das maneiras de driblar o sr. Preguiça de Pensar é confrontar o sistema perceptivo com algo que ele não sabe como interpretar, pois nunca viu nada parecido antes. Isso força o descarte das categorias usuais a criação de novas.
Dr. Berns recomenda viagens como uma ótima oportunidade de apresentar coisas inusitadas para nosso cérebro e recomenda que conhecer novas pessoas, ideias, sabores, imagens, línguas, palavras e hábitos diferentes dos nossos ajuda muito a desestabilizar padrões estabelecidos de percepção (e desconstruir preconceitos confortáveis).
Aliás, Gregory alerta para o fato de que quanto mais a gente tenta pensar de forma diferente, mais rígidas se tornam as categorias estatísticas instaladas na nossa caixola. O único jeito de domar a coisa é justamente bombardeando a teimosa com experiências inéditas.
Os iconoclastas adoram abastecer seus cérebros famintos de novidades e não costumam encaixar o que vêem nas categorias que já possuem; eles criam novas. Por isso, eles conseguem perceber o mundo sem cair na tentação de rotular as coisas do jeito que todo mundo faz. É assim que eles descobrem novas metáforas, funções, ideias e, em última instância, inovam.
2. Resposta ao medo
O medo faz com que a gente se sinta mal, inseguro, assustado. Ele distorce nossa percepção, nos paralisa e nos impede de criar.
Todo ser humano responde praticamente da mesma maneira quando submetido a uma situação de estresse: a pressão sanguínea sobe e o coração dispara; a boca seca e a gente começa a suar; os dedos tremem, a voz oscila e tem quem sinta até tontura.
Os neurocientistas identificaram 3 tipos básicos de medo: o do desconhecido, o de fracassar e o de parecer idiota. Os iconoclastas também sentem medo, mas, diferentes da plebe, conseguem evitar que sua percepção seja distorcida; como eles pensam diferente e experimentam outros pontos de vista, a coisa toda fica menos aterrorizante. Sempre é possível encontrar uma solução, uma esperança, ou outra maneira de encarar o risco.
Olha só essa frase de Henry Ford, um dos maiores iconoclastas de todos os tempos:
“Quem teme o futuro, quem teme o fracasso, limita suas atividades. O fracasso é somente a oportunidade de começar de novo, com inteligência redobrada. Não há vergonha em um fracasso honesto; há em temer fracassar“.
3. Inteligência social
Muita gente boa, criativa e destemida, já se deu mal por causa da incapacidade de vender suas ideias para os outros. Os iconoclastas bem-sucedidos não, pois eles têm esse talento muito bem desenvolvido. É basicamente esse último aspecto que diferencia a história de um Van Gogh (que morreu sozinho, na miséria) e um Pablo Picasso (seus bens foram avaliados em U$ 750 milhões quando morreu, em 1973).
Berns explica que, para vender uma ideia, o iconoclasta precisa desenvolver duas coisas: a familiaridade e a reputação positiva. A familiaridade é estabelecida pela produtividade e pela exposição; com uma boa rede de contatos a pessoa se torna conhecida tanto pelo seu trabalho como pela capacidade de impactar grupos sociais com suas opiniões.
Iconoclastas bem-sucedidos, como Picasso, são como um nó de rede; tanto influenciam grupos como os conectam. Van Gogh, apesar de brilhante, tinha uma produtividade baixa e um número ainda menor de amigos ou conhecidos. Era um gênio isolado, receita certa para a arte incompreendida e iconoclastia desperdiçada.
A construção de uma boa reputação faz com que as pessoas se acostumem com as ideias do iconoclasta em questão, fazendo com que pareçam menos assustadoras e arriscadas. Para que o iconoclasta consiga de fato vender suas ideias e mudar o mundo, é preciso se fazer confiável.
***
Gregory Berns discorre sobre vários casos de iconoclastas desconhecidos do povão e outros que se tornaram celebridades, como Steve Jobs.
A grande ironia da coisa toda é que, de tão talentosos e especiais, essas pessoas conseguem o impensável: de iconoclastas, eles se transformam em ícones, verdadeiros objetos de culto para seus fãs.
Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br
renata rubim
Fantástico, gostei demais.
Que bom se a gente conseguisse mudar os mecanismos cerebrais:)
Quem sabe, com muita atenção…
Obrigada, valeu, beijos
Lucas
Muito interessante!
Sinthya
Amei muito!
Certamente sou uma iconoclasta…..Preciso desse livro urgente!
Obrigada por nos abastecer com informações tão bacanas.
Antunes Severo
Caríssima,
você sempre instigante, hein?
Por isso, proponho uma outra pequena e singela questão: o que seria de nós sem os iconoclastas? Da minha parte antecipo: é bem possível que ainda consnuássemos assistindo os filminhos projetados nas cavernas de Platão. Concordas?
Lígia Fascioni
Oi, querido Severo!
Sua pergunta é ótima, mas não me admira nada. Ela vem de um dos maiores iconoclastas que eu conheço…..eheheh
Beijocas e saudades 🙂
Jéssica
Muito interressante!
Gostei muito da parte que fala sobre o medo, creio que ele é uma das principais causas que nos fazem arriscar menos por algo novo, seja na vida profissional ou pessoal, é claro que acredito que uma dose de medo não faz mal a ninguém, pois imagine as pessoas sem ele…
Denise Eler
Oi, Ligia! Obrigada pela resenha. Estou querendo ler este livro ha algum tempo e agora fiquei com mais vontade ainda. Vc leu o livro do Roger Martin, Choque de Ideias? Fala muito deste processo de lidar com ideias conflitantes e criar solucoes inusitadas. Sao competencias dominadas pelos bons designers e agora estudadas pelas escolas de negocio. Estas duas leituras somadas ao Efeito Medici (sobre a explosao de inovacao no Renascimento) sao convergentes. Recomendo.
Lígia Fascioni: Puxa, obrigadão, eu é que agradeço pelas dicas! Nossa, a montanha de livros interessantes para ler me faz pensar que as próximas 5 encarnações já estão comprometidas com isso….eheheh
ArianeMarques
Você é um ícone, Ligia! Minha Iconoclasta favorita… Estou com o livro aqui na estante para começar a ler. Já entusiasmou mais ao ler o seu resumo. Valeu! beijinhos. Ariane
rafael
Acho que sou uma pessoa iconoclasta. Mas não gosto de saber que surgi de uma iconoclastia tão terrível no passado.
Sou um iconoclasta moderno, pertenço ao novo modelo de iconoclastia.
Não gosto de regras e gosto do novo. Regras servem para serem quebradas, para sempre repensarmos o novo.
Acho que sou uma peça importante no mundo atual. Creio que posso acrescentar coisas boas no planeta terra.
A única regra que não pode ser quebrada é a regra de Deus.
Um exemplo disto é a Igreja Ortodoxa Brasileira, outro são as mais diversas Igrejas Evangélicas. Igrejas que agitaram o mundo, crendo e citando idéias seguindo a Bíblia.
Mas o mais importante de Tudo é Deus.
Só Ele sabe oque acontecerá com nós no final.
Thiago Valenti
Lígia,
Como você leu o Aprendendo a Viver do Luc Ferry, fica bem fácil fazer uma conexão entre o pensamento de Nietzche com os iconoclastas, derrubando ídolos, ao mesmo tempo que nas análises modernas muitos tem chegado ao ponto que ele mesmo criou uma ideologia (o autor fala disso mais no final do livro aliás).
Inclusive, Luc Ferry foi pouco, tenho mais dois autores pra complementar essas ideias e conectar com o design, se for tão bom quanto o Ferry, te aviso.
Abraços.
ligiafascioni
Oi, Thiago!
Beleza, vou ficar esperando suas dicas 🙂
Abraços e sucesso!
Rodrigo Ludwig
Achei deveras interessante a forma de conceitualização por não ter ficado cerrada, embora específica. Os conceitos servem para transformar e aprisionar, em grande parte e livra-se dessa linearidade quem exercitar-se. Acredito que existam sempre atmosferas intrinsecamente mais interessantes de lidar do que aquelas com as quais as anteriores fazem usam para apenas apresentar-se. Um iconoclasta ferrenho é Henry Wotton (ou Lord Henry), da obra “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, o autor de maior estima para mim.
Rodrigo Ludwig.
Nysia
Uma pessoa muito querida, super inteligente, mais culta e mais velha que eu, certo dia – nem sei como surgiu a pergunta – respondendo sobre o que pensava de mim, disse: “Você é uma iconoclasta em oposição às coisas do mundo!”
Eu juro que não sabia se era um elogio ou uma crítica! Dei um risinho amarelo e corri pro dicionário! Mas não adiantou nada! Onde encontrei definição de iconoclasta era sempre referente a destruir imagens, arte, ídolos…
Na boa, nesse caso eu não via como eu pudesse ser iconoclasta. Tentei olhar de um modo metafórico e tal…
Mas entender mesmo, de verdade verdadeira, só hoje!!! Valeu Lígia! No fim das contas era um baita elogio!!!!
kkkkkk
Super parabéns pelo blog!
Abraço,
Nysia
ligiafascioni
Aahahahahah… essa foi ótima, Nysia!
Abraços e muitos ícones quebrados para você 🙂
Caio
Oi Lígia! Primeiro obrigado por existir! Depois que li Design Desmodrômico, passei a olhar o design, como algo palpável, tão próximo de mim quanto eu mesmo!! Não sei você, mas eu vejo o livro como um grande desabafo, de muuita gente boa, um desabafo que eu penso e que talvez não escreveria dessa forma!! Que sacada falar dos iconoclastas! Acabei descobrindo que sou um! Quem sabe não ganho um trocado com isso!? Parabéns, por ser simples e sem “frescura”!! haha! Grande abraço!!
ligiafascioni
Puxa, muito obrigada, Caio!
Um grande abraço e muito sucesso para você!