Durante a viagem do final do ano, fui virtualmente até o Japão e convivi uma semana com Aomane e Tengo, os protagonistas de 1Q84, de Haruki Murakami. Foram exatas 1.318 páginas e, apesar de algumas ressalvas, gostei bastante. A versão em inglês só tem na forma de tijolão com a história completa que, na verdade, é uma trilogia. Acho que no Brasil eles lançaram os volumes separadamente para não assustar muito o povo.
Escolhi esse livro na livraria porque ele me fisgou logo no primeiro capítulo, que apresentava Aomane, uma mulher misteriosa e cheia de segredos que passa por uma situação inusitada. E cheguei ao livro porque queria finalmente ler alguma coisa do famosíssimo Murakami; o sujeito já ganhou vários prêmios e é sucesso absoluto no Japão, sua terra natal, e no mundo.
Confesso que achei a história interessante e bem construída; mistura surrealismo com uma pitada de esoterismo (se a pessoa quiser interpretar por esse viés, que não foi o meu caso). Murakami realmente é muito criativo e sabe escrever.
Lendo tudo numa paulada só, achei alguns trechos dispensáveis e um pouco repetitivos, mas depois me lembrei que é uma trilogia, então o autor deve ter trazido novamente à tona alguns aspectos porque deve ter considerado o hiato de tempo entre a leitura de um volume e outro.
O que eu mais gostei mesmo da história é que ela não se passa na Europa e nem nos EUA, como a maioria dos livros que a gente (eu, pelo menos) acaba lendo. A trama toda se passa em Tóquio e ficamos conhecendo melhor os hábitos de alimentação, transporte e do dia-a-dia das pessoas que vivem lá (o que só aumentou minha vontade de conhecer essa parte do mundo).
Também fica clara a importância que os japoneses dão à higiene (já dizia a Sonia Bridi, no ótimo Laowai, enquanto os chineses, mesmo quando vivem no campo, cozinham até alface antes de comer, os japoneses, com aquela densidade populacional, comem peixe cru — tem que confiar e valorizar muito os hábitos de higiene mesmo).
Aomane é uma professora de ginástica competentíssima, além de personal trainer. Ela se alia a uma cliente muito rica e poderosa para assassinar homens que cometem crimes sexuais ou de maus tratos contra mulheres, usando uma técnica especialmente desenvolvida por ela.
Tengo é um professor de matemática que escreve ficção nas horas vagas e recebe a missão de tornar inteligível uma história fantástica (mas muito mal escrita) contada por uma menina de 17 anos que viveu até os 10 numa comunidade fechada pertencente a uma seita. O moço cozinha em casa (e parece que cozinha bem, vou até tentar algumas coisas) e, além de bonitão, é muito gente boa: honesto, correto, sensível e idealista. Mas tem o raciocínio um pouco lento para uma história de ação (a Aomane é bem mais esperta); além disso, tem o péssimo hábito de sempre repetir em voz alta a última frase dita pelo interlocutor quando conversa com alguém (achei isso um pouco irritante).
O título bizarro é uma alusão à obra distópica 1984, de George Orwel. A história se passa também em 1984 e Aomane percebe, num ponto do livro, que está vivendo uma realidade paralela ao mundo real; então ela nomeia esse estranho mundo de 1Q84, onde o Q significa “Question“, uma pergunta que ela não sabe responder, pois não conhece a natureza da dimensão que está experimentando.
Apesar do final bem previsível, o autor conseguiu segurar a onda e manter a atenção até o final com muita competência. Uma ressalva: as últimas 4 páginas são as coisa mais ridículas que já li na vida, tão melosas, cheias de clichês baratos e mal escritas (elas não mudam em nada a história, mas me fizeram sentir vergonha alheia pelo autor — como é que um cara tão bom pode ter escrito aqueles parágrafos?).
Dica: leia até o final e pare quando faltar 4 páginas. Vai por mim, evita constrangimentos desnecessários…rsrsrs…
Regina Carvalho
Já começa pretensiosamente, né? 1984 é uma das maiores obras primas literárias já escritas…