Olha, em termos gerais, posso dizer que esse foi um dos melhores livros que li esse ano de não-ficção. AI Superpowers: China, Silicon valey and the new world order, de Kai-Fu Lee, é daquelas obras que faz a gente entender e repensar muitas coisas, além de propiciar uma visão mais ampla das diferenças culturais.
Kai-Fu começa falando de um momento histórico da ciência ocorrido na China e que passou praticamente despercebido para o resto do mundo: foi em 2017, quando a Inteligência Artificial conseguiu ganhar do maior especialista do mundo no jogo Go. Ao contrário do xadrez, que é essencialmente tático, Go é baseado na paciência na construção lenta de um cerco. Go depende do estado mental do jogador e é um misto de refinamento Zen com sabedoria oriental.
O número de posições possíveis nesse jogo excede o número de átomos no universo conhecido, para se ter uma ideia da complexidade. Ao contrário do Deep Blue, da IBM, que venceu Garry Gasparov no xadrez em 1997 usando a força bruta (ele testava inúmeras possibilidades e possíveis desdobramentos a cada jogada), o AlphaGo, que venceu o campeão mundial de Go em 2017, Ke Jie, teve que usar outros recursos, como Deep Learning. Ou seja, o software aprendeu a jogar e a “pensar” como um jogador.
Lee considera esse um marco da Inteligência Artificial que pode mudar todo o futuro, pois, para ele, IA é a nova eletricidade.
Nascido em Taiwan em 1960, ele se mudou para os EUA aos 11 anos de idade onde estudou ciência da Computação na Universidade de Columbia e fez seu doutorado na Carnegie Mellon, tornando-se um dos maiores especialistas do mundo na área. Depois disso, Lee fundou o centro de Pesquisas da Microsoft na Ásia, foi CEO do Google na China e tem mais de 10 patentes. Atualmente ele preside um Instituto de Pesquisa em IA chamado Sinovation Ventures e mantém um fundo de investimento em tecnologia e inovação com o mesmo nome.
Transitando entre as culturas ocidental e oriental, ele consegue desenhar um quadro bem interessante de contrastes.
Lee começa contando com começou o Vale do Silício, pós movimento hippie; os empreendedores eram quase todos filhos de profissionais bem sucedidos, como cientistas da computação, engenheiros, intelectuais e acadêmicos. Essas pessoas cresceram ouvindo que poderiam mudar o mundo se fossem criativas pensassem de maneira inovadora. A ideologia era tecno-otimista e todos se concentravam em encontrar soluções técnicas elegantes para problemas abstratos. As startups se desenvolveram num ambiente focado na missão da empresa (mission-driven).
Já os chineses tinham uma abordagem totalmente diferente. Suas empresas eram (e ainda são) totalmente focadas no mercado (market-driven). O objetivo é fazer dinheiro, não importa que para isso seja necessário criar um novo produto ou adotar um novo modelo. Não importa se a ideia é sua ou de outra pessoa; tudo o que interessa é conseguir executá-la e obter lucro com isso. Os chineses não estão preocupados com fama, glória ou em mudar o mundo. Todas essas coisas são bacanas, mas o grande prêmio que todos buscam é a riqueza financeira.
Lee explica que essa diferença tem origem nas raízes culturais. A memorização (ou seja, a cópia), faz parte do sistema educacional chinês há milênios. Entrar para a burocracia imperial e garantir o sustento dependia de decorar com precisão textos ancestrais. Enquanto Sócrates encorajava seus alunos a sempre questionar a verdade, os filósofos chineses pregavam a disciplina e aconselhavam as pessoas a seguir rituais copiando com perfeição os textos das antigas sagas.
Além da imitação, fortemente arraigada na cultura chinesa, adicione-se a profunda mentalidade da escassez resultantes do horror e da miséria que assolou a China no início do século XX por causa da revolução cultural de Mao Tsé Tung. Muitos dos empreendedores estão a apenas uma geração desse período de extrema pobreza e são filhos da política de apenas um filho por casal. Por isso, carregam nas costas seus pais e avós, sendo vistos como a única esperança da família.
Sua educação foi baseada em aprender para sobreviver; ganhar dinheiro para poder cuidar de seus ancestrais na velhice. Para tanto, os estudantes chineses precisam tirar boas notas nos exames, que dependem, veja só, de sua capacidade de memorização. Com o aumento da atividade econômica na China e das startups com seus milionários, todos os cidadãos passaram a ver o empreendedorismo e a tecnologia como a única esperança possível para a riqueza. Resumindo, a explosão do empreendedorismo tecnológico chinês se apoia em três fatores: 1) a aceitação cultural da cópia; 2) a mentalidade da escassez; e 3) a esperança na nova indústria.
Lee, é claro, sabe que essas questões não são deterministas. Influenciam, mas não definem. Segundo ele, as excentricidades pessoais dos fundadores e a regulamentação governamental também são fatores importantíssimos para moldar o comportamento das empresas. Ele conta como a China começou copiando descaradamente todo mundo, depois passou a criar adaptações para o mercado local (que é gigantesco e tem gostos muito próprios) e agora eles é que copiam uns aos outros, sempre de maneira bem agressiva. Na guerra e na China, vale tudo. Lá é matar ou morrer, em termos de negócios.
O autor conta como algumas empresas americanas que tentaram escalar na China sem se ater às diferenças culturais e quebraram lindamente a cara: eBay, Google, Amazon, Uber, LinkedIn, Airbnb. Elas teimaram em globalizar as funcionalidades e o design, mas a China é outro planeta.
Lee também conta a história de algumas gigantes chinesas, como a Alibaba, Baidu e Tencent; como a China entrou de cabeça na Internet e como ela leva vantagens absurdas quando se fala de inteligência artificial.
Treinar algoritmos de Deep Learning depende basicamente de três coisas: potência computacional, talento técnico e muitos, mas muitos dados. A China ainda está um pouco atrás dos EUA nos primeiros dois requisitos (e investindo maciçamente para ultrapassá-los), mas quando se trata de volume de dados, não tem para ninguém.
Os EUA têm dados que os usuários dos aplicativos aceitam compartilhar. Numa ditadura, privacidade não tem lugar. Assim, além da quantidade colossal de informações, elas se referem à vida real online e offline dos chineses.
O WeChat, aplicativo onipresente no país, consegue reunir as principais funcionalidades do facebook, Instagram, iMessage, Uber, Expedia, eVite, Skype, PayPal, GrubHub, Amazon, LimeBike, WebMD e outros tantos, incluindo pagamentos digitais. O país tem a maior rede de Internet das Coisas do planeta, nem de longe comparável com o resto!
Além disso, enquanto Donald Trump cortou os investimentos em pesquisa e tecnologia, o governo chinês está despejando caminhões de dinheiro em universidades, centros de pesquisa, bolsas de estudo e financiamento de startups.
Nos EUA, a pesquisa é privada e dominada pelas grandes: Google, Facebook, Amazon e Microsoft. Junto com as chinesas Baidu, Alibaba e Tencent, elas vão definir em detalhes como será o mundo nos próximos 50 anos.
Lee ainda fala sobre as 4 ondas da Inteligência Artificial:
- Internet
- Negócios
- Pecepção
- Autonomia
As primeiras ondas já estão entre nós. A Inteligência Artificial na Internet é aquela que tenta descobrir os gostos das pessoas e apresentar conteúdos que elas gostem ou prefiram. Basicamente é o uso dos algoritmos para fazer recomendações.
A Inteligência Artificial nos Negócios parte do princípio que as empresas tradicionais possuem grandes quantidade de informações que estão sendo colecionadas por décadas e que podem ser usadas para otimizar os procedimentos, como, por exemplo, seguros, empréstimos bancários, diagnósticos médicos, e assim por diante.
A Inteligência Artificial para Percepção parte do princípio que os novos algoritmos podem emular a maneira como o cérebro humano interpreta uma imagem. Agora a máquina não é mais burra; ela consegue aprender e entender que aquele cachorro é um Golden Retriver e não um Pitbull. Ou que alguém está atravessando a rua com o sinal fechado. O reconhecimento facil é uma das aplicações mais conhecidas até agora.
Já a Inteligência Artificial Autônoma congrega as três anteriores, provendo às máquinas a capacidade de otimizar o uso de conjuntos de dados extremamente complexos com sensores muito mais sensíveis e inteligentes. A diferença de uma máquina automática (a maioria das que conhecemos) das autônomas, é que essas últimas são capazes de tomar decisões quando as condições mudam. Elas se adaptam da mesma forma que um ser humano faria.
Lee fala ainda das utopias e distopias sobre o futuro do trabalho e aqui ele é bem comedido; não está em nenhum dos extremos, mas demonstra a preocupação de continuar buscando soluções para os postos de trabalho perdidos. Ele fala ainda sobre como os super processadores também estão evoluindo exponencialmente (e a maioria dos fornecedores de hardware está na China), aumentando ainda mais a velocidade da mudança.
Por último, Lee conta sua história pessoal e como mudou seu estilo de vida por causa de um diagnóstico de câncer. Segundo suas próprias palavras, Kai-Fu diz que passou a vida inteira como se estivesse dentro de um algoritmo com objetivos bem claros: maximizar sua influência pessoal e minimizar tudo o que não contribuísse com esse objetivo (nossa, essa doeu de ler, hein?).
Ele diz que nunca negligenciou a família e os filhos, mas dava somente o mínimo suficiente de atenção para que ninguém reclamasse. Todo o seu ser voltava as energias para objetivos profissionais. Com o câncer, ele se deu conta que dedicou toda a sua existência em criar máquinas que pensassem como pessoas, mas ele mesmo pensava como uma máquina. Isso mudou completamente a sua visão de mundo e seus objetivos de vida.
Agora ele acredita que a Inteligência Artificial, mais do que gerar negócios, pode nos dar a oportunidade de descobrir o que realmente nos faz humanos e nos diferencia das máquinas, que é, basicamente, a capacidade de amar e ser amado.
Ele diz que em vez de tentar descobrir como melhorar a performance do cérebro humano, a gente deveria tentar entender o coração humano.
Por último, a frase que me fez conhecer o seu trabalho e que penso resumir tudo: deixemos as máquinas serem máquinas e os humanos serem humanos.
Silvano Schröder
Boa resenha. Está na lista de leitura. Tem em português com um título um pouco diferente. https://www.amazon.com.br/Intelig%C3%AAncia-artificial-Kai-Fu-Lee/dp/6580634324/
ligiafascioni
Obrigada pela dica!
Andress
Muito bom resumo! Entrei aqui para baixar um livro (que merecia ser pago) e acabei lendo aqui. Fiquei com vontade de ler esta indicação sua. Muito bom!!!
ligiafascioni
Que bom! Espero que goste!
Sheilla Santana
Excelente resenha do livro. Parabéns pelo seu trabalho. Essa curadoria de livros que você faz tem me ajudado muito à ampliar os meus conhecimentos e estabelecer prioridades onde devo investir meu tempo. Gratidão
ligiafascioni
Que bom, Sheilla! Fico muito feliz! Obrigada!