“Flow, The psychology of optimal experience” (tradução livre: “Fluxo: a psicologia da ótima experiência“), de Mihaly Csikszentmihalyi, é uma belíssima surpresa. Resultado de décadas de pesquisa sobre os aspectos positivos da experiência humana, Mihaly chamou alegria, criatividade e o processo de total envolvimento com a vida de FLOW (eu prefiro usar o termo original, sei lá por que; acho que flui mais…rs).
O bacana é que o livro não é um manual de autoajuda com dicas para ser feliz, até porque, segundo o autor, isso é impossível, uma vez que uma vida feliz é uma criação individual e não pode ser copiada como uma receita.
O que ele faz é definir alguns princípios e dar alguns exemplos de como usar esses princípios para transformar uma vida chata e entediante em uma vivência cheia de alegria.
A FELICIDADE REVISITADA
Mihaly usou algumas ferramentas da moderna psicologia para tentar responder a antiquíssima questão: quando as pessoas se sentem mais felizes?
Ele descobriu que felicidade não é uma coisa que acontece, não é resultado de sorte ou uma chance aleatória. Não tem a ver com dinheiro ou poder. Não depende de eventos externos, mas como eles são interpretados.
Felicidade é uma condição que necessita de preparo para acontecer; precisa ser cultivada e defendida por cada pessoa. Pessoas que aprendem a controlar sua experiência interior estão aptas a determinar a sua qualidade de vida, que é o mais perto que podemos chamar de ser feliz.
Por outro lado, não adianta sair correndo atrás da felicidade, pois ela foge. É preciso criar as condições para que ela aconteça, mas não sair à caça dela. Aquela história: em vez de caçar borboletas, capriche no seu jardim.
Todo mundo já passou por situações em que parece que você está no perfeito controle de suas ações, mestre do seu destino. Pode ser quando você escreve a última frase do seu primeiro livro, ou quando está pintando e as cores parecem se combinar de um jeito único; pode ser uma comida difícil que você está preparando pela primeira vez ou quando você está consertando algum objeto e ele volta a funcionar.
Essa alegria, essa sensação de que a vida nesse momento é perfeita, ele chama de experiência ótima.
Ao contrário do que acreditamos, momentos como esse não são passivos e nem relaxados. Às vezes o corpo está exausto e no limite para terminar uma tarefa demandante.
Uma ótima experiência é uma coisa que nós construímos; um atleta que bate seu próprio recorde, um músico que consegue tocar uma parte difícil da peça, uma costureira que consegue a modelagem perfeita, um cirurgião que consegue sucesso numa operação dificílima.
Essas experiências não são necessariamente prazeirosas o tempo todo em que ocorrem; ter o controle sobre a vida nunca é fácil, e às vezes, pode ser extenuante. Mas o senso de completude, de poder, de excelência, enfim, de felicidade, é também único.
Os estudos de Mihaly envolveram principalmente experts em alguma área: cozinheiros, cirurgiões, atletas, músicos, ou seja, pessoas que passavam o maior tempo fazendo atividades que escolheram. Dessas observações é que nasceu o conceito de FLOW; um estado em que a pessoa está tão profundamente envolvida com o que está fazendo que nada mais parece importar.
Num estudo realizado ao redor do mundo, ele e sua equipe descobriram que o FLOW é descrito sempre da mesma maneira; não importa gênero, cultura, geografia, classe social, idade, nada. A pesquisa foi extensa e bem documentada com a participação de várias universidades. Não deixou dúvidas.
Então, o livro examina o processo de conseguir a felicidade através do controle da própria vida internamente. Para isso, o autor examina com cuidado como a consciência funciona e como ela é controlada. Todas as experiências que nós temos, seja de dor ou sofrimento, interesse ou tédio, é representada como uma informação para o cérebro. Se conseguirmos controlar essas informações, podemos decidir como será a nossa vida. Parece poderoso, né?
O CONTROLE
Após vários e aprofundados estudos, o autor e sua equipe chegaram a uma conclusão simples e verdadeira: o controle da consciência determina a qualidade de vida. Não é novidade nenhuma, claro. Os monges budistas sabem disso há milênios e as culturas antigas já haviam concluído o mesmo.
Só tem uma coisa: controlar a consciência não é simplesmente uma habilidade cognitiva. requer inteligência, comprometimento de emoções e querer muito. Não é suficiente saber como fazer; é preciso praticar consistentemente, da mesma maneira que atletas e músicos exercitam suas habilidades. Não, não é fácil. E o progresso é lento.
Há ainda outra questão: o controle da consciência precisa ser reformulado a cada vez que o contexto cultural muda. Não dá para aplicar diretamente os conhecimentos dos mestres Zen; é preciso fazer adaptações.
A ANATOMIA DA CONSCIÊNCIA
Gosto muito da definição que o autor dá para a consciência, que é uma coisa extremamente complexa. Olha o que ele diz:
“A consciência é a habilidade de superar a programação genética e definir sua própria ação de forma independente”.
A função da consciência é representar a informação sobre o que está acontecendo dentro e fora do seu organismo de modo que possa ser feita uma avaliação sobre como o seu corpo pode reagir. Sem consciência, o corpo apenas reflete de maneira instintiva.
Com consciência, podemos definir o peso que cada informação tem e responder adequadamente. Além disso, com consciência a gente pode inventar informações que não existem; por causa dela podemos sonhar acordados, fazer planos, mentir, escrever belos poemas e criar teorias científicas.
É a consciência que permite que alguém possa se sentir insanamente feliz ou totalmente miserável, independente do que esteja acontecendo do lado de fora. Por causa da consciência é possível transformar situações desesperadoras em desafios interessantes e perseverar mesmo em condições muito adversas.
O autor também diz que a consciência é a ordem intencional das informações e mais; que as intenções forçam a ordem das informações na consciência. A questão é que o nosso sistema nervoso tem um limite de quanta informação a gente consegue processar ao mesmo tempo. Por isso, por exemplo, é tão difícil entender o que três pessoas estão falando ao mesmo tempo.
Ele faz ainda uma observação interessante: se a gente considerar a capacidade de processamento do cérebro, ela é relativamente baixa. Mas se a gente considerar o quão pouco as pessoas utilizam seus recursos, vamos ver que dá e sobra.
O outro conceito importante é o da atenção; é ela que vai definir, entre o oceano de informações disponíveis, quais são relevantes. A marca de uma pessoa que controla a sua consciência é a habilidade de concentrar a sua atenção no que deseja, sem se distrair, até atingir seu objetivo.
A atenção pode ser investida de maneiras diversas (por exemplo, um extrovertido vai querer interagir com outras pessoas; um paranoico vai se concentrar em identificar perigos no ambiente). Ela pode nos fazer sentir felizes ou miseráveis, dependendo para onde for dirigida.
FLOW: A ORDEM NA CONSCIÊNCIA
Quando a maneira como a informação se organiza é coerente com o objetivo, o flow acontece naturalmente. Mas isso também depende de como a identidade da pessoa está construída, o que é uma questão nada simples. A complexidade está em resolver dois processos: a diferenciação e a integração.
A diferenciação implica em ser único; já a integração busca se unir com outras pessoas.
Combinar essas tendências é um desafio, mas necessário para se chegar ao flow e à harmonia.
ALEGRIA E QUALIDADE DE VIDA
O autor fala ainda que a capacidade de se alegrar está diretamente relacionada à qualidade de vida da pessoa. Ele apresenta vários elementos que podem despertar o estado de alegria: desafios que requerem habilidades específicas, objetivos claros e feedbacks, concentração na tarefa, etc.
CONDIÇÕES PARA O FLOW ACONTECER
Ter a sensação de completude e perder a noção do tempo é uma coisa maravilhosa, né? Mas como fazer isso acontecer?
Algumas vezes o flow acontece por acaso; por exemplo, você está jantando com amigos queridos, alguém conta uma piada engraçada, todos riem, e aquela sensação incrível de comunhão e sintonia acontece.
Mas na maioria das vezes, não é assim que funciona. Tem gente que consegue se sentir pleno mesmo internado num hospital, enquanto outros morrem de tédio durante as férias num resort de luxo.
Há algumas atividades que são desenhadas para o flow. Por exemplo: compor uma música, dançar, mergulhar, escalar montanhas, fazer longos passeios por florestas, surfar, enfim. Todas exigem habilidades específicas, definição de objetivos e muita concentração para serem feitas. Jogos, são, de maneira geral, muito eficientes para atingir o estado de flow, assim como a arte e a religião (alguns rituais são muito propícios ao flow).
O CORPO E O FLOW
O autor também fala que tudo o que o nosso corpo pode realizar é potencialmente uma fonte de alegria. Desde os desafios para torná-lo mais forte, rápido ou ágil, até o prazer de se movimentar, são meios de se atingir o flow.
Ele fala do sexo, da yoga, das artes marciais e da exploração prazeirosa dos sentidos.
Fala também da ótima experiência que podemos usufruir apenas em olhar, cheirar, sentir o gosto, ouvir e tocar, nas mais diversas diversas situações.
O SELF AUTOTÉLICO
Mihaly também resume o que chama de experiência autotélica, que consegue transformar potenciais ameaças em experiências prazeirosas e manter a harmonia interior.
O termo significa literalmente “o self que tem objetivos auto-contidos” e reflete a ideia de que os objetivos não são determinados pelo exterior (convenções sociais ou necessidades biológicas, por exemplo), mas pelo autoconhecimento.
Aqui um resumo das regras para atingir esse self autotélico:
1. Determinar objetivos
Essa regra está intimamente relacionada ao reconhecimento de desafios. Assim, se defino que vou jogar tênis, logo reconheço o que preciso fazer para conseguir atingir esse objetivo e vou atrás do que preciso aprender. Há também a possibilidade reversa: se percebo que sou bom ou tenho prazer fazendo algo, posso procurar alguma ocupação que valorize essas habilidades.
E é preciso estar atento aos feedbacks para acompanhar a evolução e ter consciência dos limites, para não escolher algo não realista; não é uma coisa aleatória. A pessoa pode perfeitamente mudar seus objetivos se perceber que não está indo na direção certa. Para isso, o importante é o autoconhecimento.
2. Estar imerso na atividade
Aqui ele fala da importância de escolher objetivos realistas (não dá para ser algo do tipo “salvar o mundo”) e alcançáveis.
Por exemplo: uma pessoa pode entrar numa sala cheia de gente e decidir que vai aproveitar a festa. Se ela tem um self autotélico desenvolvido, não vai sair falando com todo mundo aleatoriamente. Vai observar as pessoas, identificar as que talvez ela tenha afinidade, e se aproximar puxando conversa. Se o feedback for negativo, ela pode tentar a próxima, sem problemas.
Mas o importante é se concentrar na tarefa de estabelecer uma conexão e não sair falando com o primeiro que aparecer, já prestando atenção em outro.
3. Prestar atenção no que está acontecendo
Concentração leva ao envolvimento, que só pode ser mantido se a pessoa prestar atenção no andamento da coisa. Por uma distração, um maratonista pode perder a corrida, ou um advogado perder a causa, ou um ator esquecer a fala. O self autotélico implica na habilidade de manter o envolvimento, de estar presente.
4. Aprender a alegrar-se com a experiência imediata
Estar no controle da mente implica em considerar qualquer evento como fonte de alegria: uma brisa num dia quente, ver o reflexo do sol numa janela, fechar um negócio bacana, tomar um copo de água fresca quando se tem sede, observar um gatinho olhando para você.
CONCLUSÕES
O flow não acontece por acaso; ele é o resultado de trabalho dedicado. Não é relaxar e deixar a vida levar; é justamente o contrário: estar atento e presente para usufruir de cada momento, trabalhar a mente para prestar atenção nos detalhes.
Eu gostei muito e vou tentar praticar (se bem que desconfio que pratico bastante, só não sabia o nome). E você?
Comentários