Desde que li “A revolução do lado direito do cérebro”, de Daniel Pink, há quase uma década, fiquei encantada com a metáfora dos lados do cérebro que ele usa.
Com certeza você já ouviu falar: o lado esquerdo é analítico e ocupa-se com a razão, com a estrutura, com a modularização das informações. É com esse lado que a gente aprende a ler e escrever, a formar palavras, a atribuir significados aos números, a encadear seqüências lógicas, a analisar criticamente um problema.
O lado direito ocupa-se da síntese e trata da emoção, do subjetivo, do contextual. Esse é o lado que reconhece um rosto (sem se preocupar com as partes), que interpreta e entende piadas e frases de duplo sentido, que sintetiza informações, que conecta, que cria e inova.
O lado esquerdo é seqüencial. O direito, simultâneo.
Bonito, né? Mas estudando um pouco mais, a gente aprende que essa metáfora, é só bonita mesmo, pois não corresponde à realidade.
A neurocientista brasileira (ah, como essas nossas cientistas brasileiras são maravilhosas e só nos enchem de orgulho!) Suzana Herculano-Houzel já tinha cantado a bola.
Em 2012, ela foi convidada para falar sobre as diferenças que existem entre o cérebro do homem de da mulher num evento promovido pela Casa TPM (aqui o vídeo). Num lugar onde estava todo mundo louvando as características femininas, veio a intrépida Suzana e disse o que ninguém esperava ouvir: as diferenças anatômicas são praticamente mínimas, quase inexistentes, assim como o funcionamento; não tem essa de cérebro pink, de lado direito e de características essencialmente femininas.
Basicamente, o cérebro do homem é maior do que o da mulher porque, na média, os homens são fisicamente maiores mesmo. O peso do órgão varia de 1,2 a 1,4 kg, dependendo do tamanho da pessoa (quem é maior, tem mãos, pés e orelhas maiores; por que o cérebro também não seria proporcional?). Mas aqui pode-se afirmar com certeza: tamanho não é documento. Só a título de informação, o do Einstein tinha apenas 1,2 kg; e imagine quanto deve pesar o cérebro de um búfalo ou o de um elefante marinho.
Mas de onde tiraram a ideia de que homens são mais racionais e usam mais o lado esquerdo; ao contrário das mulheres, mais emocionais, que usam mais o lado direito?
Suzana explica como é que começou essa história da carochinha que repetimos até hoje como papagaios. É que em 1863, conseguiram, pela primeira vez, documentar bem direitinho uma lesão no cérebro, com imagem e tudo. O paciente era um homem e tinha perdido a fala. A imagem mostrava um buraco no lado esquerdo; daí que se deduziu que essa parte era responsável pela fala. Até aí, perfeito, fazia todo o sentido.
Mas eis que um grupo de biólogos resolveu aproveitar a deixa e desdobrar a ideia: se a fala está no lado esquerdo, então todas as coisas “úteis” também devem estar no mesmo lado: o pensamento lógico, as atividades motoras, a razão. Como o grupo era todo formado por homens, numa época em que eles dominavam tudo ainda mais que hoje, rapidamente associaram essas atividades como masculinas. Mas então, o lado direito, para manter a simetria, teria que compensar: a irracionalidade, a emoção, a subjetividade, ficaram representando o feminino. Só que o negócio nunca teve nenhum fundamento científico; era pura viagem desse bando de rapazes criativos; a coisa pegou de tal jeito que até hoje todo mundo repete, como se fosse uma grande verdade.
A Dra. Carla Tieppo, no seu maravilhoso “Uma viagem pelo cérebro” esclarece ainda mais a coisa, para não deixar nenhuma dúvida.
Ela desmonta o mito do hemisfério cerebral esquerdo ser mais racional, lógico, que gosta de seguir regras, e o hemisfério cerebral direito ser mais emocional, livre e criativo, de um jeito muito simples e elegante: usando a anatomia.
Primeira constatação: os dois hemisférios são anatomicamente iguais, ou seja, apresentam os mesmos sulcos, os mesmos lobos frontais, parietais, temporais e occipitais. Inclusive, eles fazem quase o mesmo processamento nas áreas primárias, aquelas que recebem os estímulos sensoriais e dão origem aos estímulos motores. O que acontece é que, nas áreas sensoriais, as informações são tratadas pelo lado contrário. Exemplo: o hemisfério direito irá receber e tratar as informações do campo visual e de sensibilidade corporal do lado esquerdo e vice-versa.
Nas áreas dependentes de informações auditivas é que as coisas começam a mudar. O córtex auditivo secundário esquerdo é especializado em reconhecer padrões de voz humanas e construir circuitos para reconhecer palavras em 90% das pessoas. Isso corrobora a descoberta de 1863, citada pela Suzana, que o hemisfério esquerdo é de fato especializado na linguagem. Mas olha só que interessante: o hemisfério direito é o que se torna mais ativo para padrões de musicalidade, inclusive na fala. Então, o lado esquerdo reconhece as palavras, mas o direito reconhece a entonação.
Além da musicalidade, o hemisfério direito também é especialista nas relações espaciais, muito importantes para a engenharia, arquitetura, design e pintura, por exemplo. O pensamento matemático propriamente dito depende muito da capacidade de abstrair relações espaciais, que estão do lado direito.
Assim, não dá para dizer que um lado é criativo, emocional, intuitivo e o outro é analítico, racional, sequencial, inclusive porque nenhuma criação está isolada em apenas uma dessas capacidades.
Justamente o que dá poder ao cérebro é a sua capacidade de integrar, associar, comparar e criar. Sem a integração dos dois hemisférios, essas tarefas são fisicamente impossíveis.
E para acabar de vez coma conversinha: todos os seres humanos têm como lado dominante o hemisfério da linguagem, que em 90% das pessoas, é o lado esquerdo.
Então, a criatividade não tem a ver com o domínio de um dos lados do cérebro, combinado?
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