Li esse livro faz mais de uma década e ontem, quando a Fah Maioli mencionou o volume como preparação para o curso de Coolhunting que irei fazer com ela, fiquei surpresa em não encontrar uma resenha dele aqui.
Então, antes tarde do que nunca. E esse é o momento propício, pois o Coronavírus veio também para mudar nossos hábitos de consumo.
“A linguagem das coisas” é do escritor Deyan Sudjic, um britânico descendente de ioguslavos que é referência em design e arquitetura. Entre outros feitos, o homem foi diretor do London Design Museum até o ano passado, cargo que exerceu por sete anos.
Sudjic começa observando que “nunca possuímos tantas coisas como hoje, mesmo que as utilizemos cada vez menos”. Ele nota que esses brinquedos, para adultos infantilizados, estão cada vez maiores (televisões gigantes e geladeiras que parecem guarda-roupas), abarrotando espaços cada vez menores. Ele lamenta: “como gansos alimentados à força com grãos até seus fígados explodirem para virar foie gras, somos uma geração nascida para consumir”.
Há um parágrafo especialmente premonitório:
“é bem possível que estejamos à beira de uma onda de repulsa ao fenômeno do desejo por tudo o que é fabricado, a toda a avalanche de produto que ameaça nos soterrar. No entanto, ainda não há sinal disso, apesar do surgimento da ansiedade apocalíptica pelo terrível destino que nos espera se continuarmos nessa farra sem limites”.
Será que o Coronavírus vai conseguir mudar isso?
E mais: “os objetos estão longe de serem tão inocentes (…) e é isso que os torna interessantes demais para ser ignorados”.
O livro está dividido em cinco capítulos: 1. Linguagem; 2. O design e seus arquétipos; 3. Luxo; 4. Moda; e 5. Arte.
No capítulo Linguagem, Sudjic analisa as armas de sedução das empresas para nos fazer consumir. E cita o pioneiro da publicidade, Earnest Calkins, que explica que os bens são de duas classes: as que utilizamos, como carros e aparelhos de barbear; e os que consumimos, como pasta de dente e biscoitos. A engenharia de consumo trata de fazer com que a gente consuma os produtos que antes apenas utilizávamos. Os objetos industriais que antes tinham um ciclo de vida medido em anos, agora é em meses.
Sudjic conta que no início da atividade do design industrial, seus idealizadores, como William Morris, eram considerados reformadores sociais desafinados com a época. Mas logo se transformaram em vendedores de panaceias, como Raymond Lowey.
O autor trata os designers de hoje como contadores de histórias, que precisam incluir mensagens claras nos objetos que criam. Mas ele alerta:
“Embora, sem dúvida seja verdade que o design é uma linguagem, só quem tem uma história convincente para contar sabe como usar essa linguagem de maneira fluente e eficaz”.
E nem a tipografia escapa, pois, como lembra Deyan, o fato da letra ser chamada “caractere”certamente não é coincidência. A letra é perfeitamente capaz de representar personalidade e caráter humanos.
Ele resume que o design, em todas as suas manifestações, é o DNA de uma sociedade industrial e o que torna o design atraente é justamente a ideia de que é preciso entender mais sobre os objetos do que apenas as questões óbvias de função e finalidade.
No capítulo O design e seus arquétipos, Deyan explica que os objetos não existem no vácuo; eles fazem parte de uma complexa coreografia de interações e têm impacto sobre como as pessoas vivem. Como exemplo, ele cita a televisão; quando ocupou o principal lugar da sala, as relações humanas e os hábitos se modificaram em torno dela. O controle remoto mudou novamente as interações. Ele não diz, mas o advento dos smartphones e tablets alterou novamente essa dinâmica.
Por outro lado, Sudjic conta que alguns arquétipos carregam histórias antiquíssimas, com as gerações produzindo interpretações particulares de seus formatos, como um mostrador de relógio, uma torneira ou uma chave. Aqui ele analisa arquétipos e versões de objetos tão diversos como armas, luminárias, cédulas de dinheiro, cadeiras e carros, entre outros.
No capítulo Luxo, o autor diz que o luxo era a trégua que a humanidade encontrava para si da luta diária pela sobrevivência, tanto que a escassez pode transformar as coisas mais simples em luxo. Só que é mais difícil de entender o luxo numa época de fartura como a que vivemos; talvez por isso, sua busca é mais onipresente agora do que em qualquer outra época da história. Na ausência da escassez, o luxo adquiriu um papel além do signo do privilégio.
Para que o luxo sobreviva, ressalta Deyan, as tradições das quais que ele depende precisam ser continuamente reinventadas. Basta lembrar que quase ninguém mais se interessa por comprar canetas-tinteiro, que já foram consideradas ícones entre os endinheirados. Atualmente, o luxo está cada vez mais nos detalhes que fazem os consumidores gastarem mais dinheiro.
No capítulo Moda, Sudjic explica como surgiu o fenômeno do desfile de moda como espetáculo, deixando de ser um meio para ser um fim em si, onde mais importante que exibir as roupas, é exibir a plateia de celebridades na primeira fila para consolidar a marca.
Ele conta também que a moda, apesar de ter se transformado num colosso industrial dominado por poucos conglomerados, depende da arte, da fotografia e do cinema como referências visuais. Mas alerta: moda não é arte. Mas nunca antes a moda se esforçou tanto para parecer ser. E ela também se alimenta avidamente da arquitetura e do design.
Ele passa o capítulo tentando responder não à questão se a moda é mesmo design, mas o que a moda fez com o design. E mais: o que fez com a arte, a fotografia e a arquitetura.
Ao final, conclui:
“o processo de fazer carros, eletrodomésticos e computadores tem muitas carcaterísticas do processo de fazer moda — um processo que não dá sinaisde desaceleração. A moda é uma forma mais desenvolvida de obsolescência embutida, força motriz da mudança cultural”.
Por último, no capítulo Arte, Deyan reflete que a separação entre a arte e o design talvez não seja tão acentuada como às vezes se sugere, pois o design sempre tratou de algo mais que a utilidade imediata.
Ele discorre longamente sobre o simbolismo do arquétipo da cadeira e como ela perspassa o simbólico e o funcional.
No final, Sudjic conclui que vivemos numa época em que nossa relação com aquilo que possuímos está passando por uma transformação radical, pois, desde que surgiu como profissão independente, o design é usado para manipular o desejo.
Em tempos de Coronavírus, penso que muita coisa ainda está por se transformar, principalmente para o trabalho do designer e seu papel nas relações de consumo.
Mas como e exatamente de que forma, só tempo dirá.
Katia
Gostei! Vou tentar lê o livro. Abriria um parênteses para a participação da China neste contexto. Na massificação, copiando tudo e vendendo a 1,99. E com o Covid-19 que sem dúvida trará mudanças de comportamento. Cuide -se!
ligiafascioni
Você tem toda razão! O Coronavírus vai trazer muitas mudanças; assim esperamos. Obrigada!
Graça Taguti
Muito boa a resenha.
As metamorfoses e funções dos objetos no decorrer dos tempos e da sanha consumista. .
Obrigada por compartilhar.
Beijos,